É curioso, e muitas vezes de uma crueldade fascinante, como a dor se manifesta na arte interativa. Existe uma linha tênue, quase invisível, entre o sofrimento que nos repele, aquele que nos faz desviar o olhar e buscar o conforto do escapismo fácil, e aquele que nos convida a entrar, a sentar na beira do abismo e olhar para baixo até que a vertigem se torne familiar. Death Howl, desenvolvido pela The Outer Zone e publicado pela 11 bit studios, opera exatamente nessa fenda geológica da emoção humana. Lançado no crepúsculo de 2025, o jogo se apresenta sob a alcunha técnica de um construtor de baralhos com elementos de soulslike, mas reduzir essa obra a seus gêneros seria como descrever O Sétimo Selo de Bergman apenas como um filme sobre uma partida de xadrez. Há uma redução imperdoável nessa categorização que ignora a substância vital que pulsa sob a superfície de seus pixels.
O que temos aqui não é apenas um jogo de cartas ou um exercício de masoquismo digital desenhado para testar reflexos e paciência. É uma descida visceral, quase tátil, ao inferno pessoal de uma mãe. Ro, a protagonista, não é uma heroína no sentido clássico da jornada que estamos acostumados a consumir no café da manhã da cultura pop, blindada pelo destino e pela certeza da vitória. Ela é uma ferida aberta. Uma caçadora de uma pequena tribo que, incapaz de aceitar a morte do filho, decide rasgar o véu da realidade e invadir o Reino dos Espíritos. E, meus queridos, que lugar inóspito, que paisagem desoladora é essa que a The Outer Zone construiu para nós.

Ao jogar Death Howl, a sensação que permeia a experiência não é a de diversão na acepção dopaminérgica e instantânea da palavra, mas de uma tensão constante, uma atmosfera de quietude aterrorizante que é, ao mesmo tempo, repulsiva e magnética. Não é um jogo para se jogar levianamente. É um jogo para se suportar, e digo isso como o maior dos elogios. Ele exige do jogador não apenas habilidade motora ou estratégica, mas uma disposição emocional para habitar a tristeza sem a pressa de curá-la. É uma experiência que, como um filme de Lars von Trier, pode não ser agradável, mas é inegavelmente poderosa, marcando a pele de quem joga com a tinta indelével da melancolia.
Nesta análise, mergulharemos nas entranhas desse lobo moribundo. Dissecaremos a narrativa que sangra folclore, as mecânicas que punem com a severidade de um inverno rigoroso, a estética que encontra beleza na decomposição e como essa arquitetura complexa se sustenta no hardware moderno que utilizei. Preparem-se, pois o uivo da morte é longo e ecoa nas cavernas mais profundas da nossa psique.
A Tessitura da Dor
A narrativa de Death Howl é construída sobre o silêncio e a ausência. Diferente de RPGs modernos que soterram o jogador sob montanhas de exposição, códices intermináveis e diálogos explicativos que subestimam a inteligência de quem está do outro lado da tela, aqui a história é contada através do que chamo de arquitetura do luto. O Reino dos Espíritos é fraturado em quatro reinos e treze regiões distintas, cada uma ecoando um estágio diferente da negação ou da barganha de Ro.
A premissa é enganosamente simples, quase arquetípica, focada em trazer o filho de volta. É o mito de Orfeu e Eurídice reencenado, mas despido do romantismo trágico e vestido com a pele crua da sobrevivência tribal. Ro é uma mãe em negação absoluta. A morte do filho não é aceita como um fim, mas como um erro, uma falha na tecitura do universo que ela, com suas próprias mãos e determinação inabalável, pretende corrigir custe o que custar.

A execução dessa premissa é de uma complexidade emocional que beira o sádico. Ro é guiada por vozes de outro mundo, vozes que às vezes soam como um bullying psicológico, um lembrete constante de sua inadequação e da impossibilidade de sua tarefa. O jogo não segura sua mão. Ele a empurra em direção ao precipício. A atmosfera é pesada, inspirada em um folclore que mistura elementos eslavos e nórdicos, onde a natureza não é apenas um cenário passivo, mas uma entidade tátil e presente que respira no seu pescoço.
Há uma honestidade brutal na forma como a narrativa se desenrola. Não há cenas cinematográficas de milhões de dólares a cada cinco minutos para recompensar o jogador por ter apertado um botão. A história está na descrição lacônica de um item, no som de ossos estalando ao entrar em combate, na respiração ofegante de Ro, nos sussurros das árvores apodrecidas. É uma fábula sombria, onde o poder sobrenatural que permite a Ro lutar custa sua sanidade e humanidade, transformando-a lentamente naquilo que ela combate.
O Filho como Espectro
A busca pelo filho, que assume a forma de um cervo em certos momentos dessa floresta etérea, é uma metáfora poderosa para a inalcançabilidade do passado. Você vê o objetivo, você o persegue, ele está logo ali, à espreita entre as árvores, mas o caminho é bloqueado por horrores que exigem que você sangre para avançar. O cervo foge. O filho continua morto. E Ro continua caminhando, movida por uma esperança que parece mais uma doença do que uma virtude.

Essa estrutura narrativa reflete a própria natureza cíclica e muitas vezes estagnada do luto. Não há progresso linear. Você avança dois passos na aceitação e recua três na raiva. O jogo materializa isso ao fazer com que os inimigos renasçam sempre que você busca conforto e cura. A cura tem um preço, que é o retorno dos demônios que você pensou ter vencido. É uma lição dura, ensinada não por palavras, mas por sistemas de jogo. A persistência de Ro é tanto sua maior virtude quanto sua maldição trágica. Ela é Sísifo, empurrando a pedra montanha acima, mas a pedra é o cadáver de seu filho.
O Xadrez da Sobrevivência
Se a história é o coração pulsante e sangrento de Death Howl, o gameplay é o esqueleto rígido, calcificado e inflexível que o sustenta. Estamos falando de um combate tático em grade fundido com a construção de baralhos. Mas esqueça a fluidez arcade e a satisfação rápida que outros jogos do gênero entregam. Aqui, cada movimento é um cálculo de risco, uma aposta onde a casa sempre tem a vantagem.
O jogo utiliza um sistema de Pontos de Ação, cinco por turno inicialmente, que devem ser divididos milimetricamente entre movimentação e uso de cartas. E aqui reside a genialidade, e a fonte inesgotável de frustração, do design da The Outer Zone. Mover-se custa energia. Atacar custa energia. Defender custa energia. Tudo tem um custo. E os inimigos não jogam limpo. Eles não respeitam a etiqueta do duelo.
Os adversários têm alcance superior, eles têm efeitos negativos que envenenam e corroem sua vida turno após turno, e eles punem o posicionamento incorreto com uma severidade que faria um professor de cálculo parecer benevolente. Um passo em falso no grid não significa apenas levar dano. Significa ficar exposto a um ataque em área, ser empurrado para uma armadilha ambiental ou perder a oportunidade de finalizar um inimigo crucial. É um jogo de xadrez onde as peças do adversário são monstros grotescos e o seu rei é uma mãe exausta.
A Fusão Improvável: Soulslike e Cartas
A estrutura macro do jogo é de um Soulslike isométrico. Você explora o mapa livremente, caminhando por florestas, pântanos e ruínas. Mas ao colidir com um inimigo, o mundo se transforma. A exploração fluida é substituída por uma grade tática preta e vermelha, um verdadeiro tabuleiro da morte. Essa transição é chocante e eficaz, demarcando claramente o espaço da segurança relativa e o espaço do conflito.
Não há cura fácil em Death Howl. As Bosques Sagrados funcionam como as fogueiras clássicas do gênero. Elas curam Ro, permitem salvar o jogo e fazer melhorias, mas, em contrapartida, ressuscitam todos os inimigos do mapa. Isso cria um dilema constante, uma tensão econômica na mente do jogador. Avançar ferido e arriscar perder tudo o que conquistou, ou voltar, curar, e ter que enfrentar os mesmos horrores novamente?
Essa mecânica de renascimento dos inimigos não é apenas um artifício para aumentar a duração do jogo. É uma mecânica de desgaste, uma batalha de atrição que exige que o jogador internalize a exaustão de Ro. Você sente o peso de ter que lutar novamente contra aquele grupo de Cães-Caveira que quase te matou dez minutos atrás. O jogo te força a provar que sua vitória anterior não foi sorte, mas competência. E se foi sorte, você será punido.

O jogo é hostil. Mas essa hostilidade é temática. O Reino dos Espíritos não quer Ro lá. A morte não quer devolver o que tomou. A dificuldade, portanto, não é uma falha de design, mas uma ferramenta narrativa. O jogo precisa ser difícil para que o desespero de Ro seja palpável para o jogador. Se fosse fácil trazer o filho de volta, o luto não seria o monstro que é.
A Economia do Sofrimento
Aprofundando nas engrenagens que movem essa máquina de dor, o sistema de progressão é fascinante e implacável. A moeda do jogo são os “Howls”, ou Uivos, que são os gritos de morte dos inimigos derrotados, colhidos como essência vital. Eles não são apenas pontos de experiência, são a essência do sofrimento alheio que Ro consome para se fortalecer.
A mecânica de perda é clássica, mas adaptada cruelmente. Se você morre, você perde seus Uivos. Eles ficam no local da sua morte, ou melhor, com o inimigo que te matou. Para recuperá-los, você deve voltar lá e derrotar aquele inimigo específico. Se falhar, se morrer no caminho ou durante a revanche, eles desaparecem para sempre.
Isso adiciona um peso colossal a cada encontro. Não é apenas o fim do jogo momentâneo. É a perda de tempo, de esforço, de vida. É a anulação do seu progresso. Isso cria momentos de tensão insuportável quando você está carregando uma quantidade grande de Uivos, desesperado por um Bosque Sagrado, e se depara com um inimigo novo cujos padrões de ataque você desconhece. O medo de perder é palpável e constante.
O Baralho de Ossos
A construção do baralho também foge do trivial. Em Death Howl, você é um carniceiro e um artesão. Você coleta materiais como vísceras, plantas e ossos para criar cartas. Você está literalmente montando seu arsenal com os restos mortais do que tentou te matar. Há algo de primitivo e visceral nisso.
Existem mais de 160 cartas disponíveis e Totens xamânicos que alteram passivamente as regras do jogo. O interessante é a restrição regional e a limitação do baralho. Você só pode ter vinte cartas. Além disso, há uma penalidade de incompatibilidade onde você pode usar qualquer carta, mas cartas pertencentes a uma região diferente da que você está custam mais energia para serem jogadas.

Isso força uma adaptação constante. Você não pode simplesmente montar um baralho perfeito e atropelar o jogo inteiro do início ao fim. O conjunto de cartas que funcionou na floresta pode ser ineficiente, ou custoso demais, no pântano ou nas montanhas geladas. O jogo te obriga a descartar suas ferramentas favoritas e aprender a usar novas. É uma metáfora para a adaptação ao luto, pois as estratégias que usamos para lidar com a dor ontem podem não servir para a dor de hoje.
O Grind como Penitência
O jogo exige um esforço repetitivo para fazer pequenos progressos. A coleta de materiais para criar novas cartas pode ser lenta e arrastada. Você precisa matar os mesmos monstros várias vezes para ter os ingredientes necessários para aquele ataque em área que pode salvar sua vida.
Para um jogador acostumado com a progressão rápida e constante de jogos modernos, isso pode parecer um defeito de ritmo. Mas eu diria que isso é parte da penitência. Ro está em uma missão impossível. O trabalho dela é árduo. O tédio e a repetição são componentes do sofrimento. O jogo não tem medo de entediar o jogador se isso servir ao propósito de fazê-lo sentir o peso da jornada. É uma escolha de design arriscada, que aliena muitos, mas que aprofunda a imersão para aqueles que aceitam o contrato proposto pelo jogo.
A Estética do Desespero
Visualmente, Death Howl adota uma estética que chamam de “big-pixel art”. Não é o pixel art detalhado e crocante que vemos em tantos indies nostálgicos. É algo mais cru, mais sujo, mais primordial. As formas são blocadas, quase abstratas em momentos, exigindo que a imaginação do jogador preencha as lacunas do horror.
A paleta de cores é contida, quase monocromática em certas regiões. Tons de cinza, marrom, verde podre e um branco sujo de neve dominam a tela. Mas essa monotonia é quebrada violentamente pelos vermelhos e pretos durante os combates. O contraste é chocante. É como se o mundo sangrasse quando a violência irrompe.

O design das criaturas merece destaque. Os Cães-Caveira, os Cogumelos Marinhos Lamenturientos e as abominações mutantes da floresta escura evocam um horror folclórico que lembra filmes como A Bruxa ou O Ritual. Eles não são apenas monstros genéricos. Eles parecem pertencer àquele ecossistema doente. A natureza em Death Howl é hostil. Fungos exalam esporos quando você passa, o gelo estala sob seus pés, árvores gemem. O mundo está vivo, mas está morrendo.
A Sinfonia do Fim
Mas se o visual é a pele do jogo, o áudio é a sua alma. A trilha sonora, composta pelo músico dinamarquês Chris Bjørumslet e pelo diretor do jogo Malte Burup, é uma obra-prima de ritmos xamânicos, cantos assombrosos e tensão cinematográfica. Ela não é melódica no sentido tradicional. Você não vai sair assobiando o tema de Death Howl. É uma música textural. Ela usa sons granulares, orgânicos e sintéticos, para criar um ritual sonoro.
O som aqui não é acompanhamento, é protagonista. Ele cria um espaço físico para a angústia. O silêncio é usado como arma. Quando a música cresce, com seus tambores tribais e sopros distorcidos, você sabe que algo terrível está por vir. É uma trilha que arranha os ouvidos, que incomoda, que mantém o jogador em um estado de alerta constante.
Os efeitos sonoros são igualmente brilhantes em sua repulsividade. O som de ossos estalando quando você entra no menu ou inicia um combate é de gelar a espinha. Os passos abafados na neve, o som crocante dos golpes acertando a carne dos espíritos corrompidos. Tudo tem peso. Tudo tem textura. O áudio comunica a fisicalidade da violência de uma forma que os pixels, por si só, não conseguiriam.
A Realidade da Máquina
Para o jogador de PC que dispõe de uma configuração robusta como a minha, equipada com um processador Ryzen 7 5700x, uma placa de vídeo RTX 4060 e 32GB de memória RAM, a pergunta técnica não é se roda, mas como se sente.
Death Howl, sendo um jogo baseado em sprites 2D e grades táticas, não é um devorador de recursos como um título AAA de mundo aberto. No entanto, a otimização de jogos indies é um terreno muitas vezes pantanoso. Com essa configuração, o jogo rodou com fluidez absoluta. A RTX 4060 é, sinceramente, muito mais do que o necessário para a renderização gráfica proposta, o que garante que pude desfrutar dos efeitos de iluminação atmosférica, partículas de neblina e sombras dinâmicas sem qualquer queda de quadros perceptível. O Ryzen 7 5700x lidou com a lógica dos turnos e da inteligência artificial inimiga sem suar. Os 32GB de RAM garantiram que o jogo e todas as outras tarefas do sistema convivessem em harmonia.
A Beleza do Insuportável
Death Howl não é um jogo para todos. Ele é uma experiência de nicho que se recusa a pedir desculpas por ser o que é. Ele é arrogante em sua dificuldade, hostil em sua atmosfera e exigente em suas mecânicas. Ele pede que você aprenda a linguagem da dor.
Para aqueles que buscam a satisfação rápida de explodir alienígenas, a fantasia de poder de ser um deus imortal ou a narrativa mastigada de um blockbuster, passem longe. Death Howl vai mastigá-los e cuspi-los sem cerimônia. Ele não quer ser seu amigo.

Mas, para aqueles que veem nos videogames uma mídia capaz de explorar a complexidade da condição humana, que apreciam a poesia assustadora de um mundo construído sobre a perda, que encontram satisfação na superação de probabilidades injustas e que não se importam de olhar para o abismo e ver o abismo sorrir de volta com dentes afiados, este é um título obrigatório.
É uma obra que combina a frieza matemática de um construtor de baralhos com o calor humano de uma tragédia grega. É difícil, é injusto, é doloroso. E é, em sua melancolia pixelada, absolutamente belo. Uma joia bruta, talhada na pedra do sofrimento, que brilha com uma luz negra e fascinante. Ro pode nunca encontrar a paz, mas a jornada dela ficará com você muito tempo depois que a tela voltar ao preto. É uma descida magnífica e angustiante à escuridão, e eu não gostaria de estar em nenhum outro lugar.
NOTA
CONSIDERAÇÕES
Death Howl é uma obra de arte sádica e magnífica. Ele não tenta te divertir; ele tenta te assombrar, e consegue com louvor. É um jogo que tropeça em seu próprio sadismo técnico às vezes, tornando a jornada exaustiva, mas compensa cada momento de frustração com uma atmosfera tão densa e poética que é impossível desviar o olhar. Não é para quem busca passatempo, é para quem busca cicatrizes. Uma joia bruta, dolorosa e inesquecível.
