Existe uma crueldade muito particular na ideia de transformar o sono, esse nosso refúgio biológico, esse momento em que o corpo se repara e a mente divaga, em um agente de extinção. É com essa premissa avassaladora, de uma angústia quase palpável, que Sleep Awake se apresenta. Não estamos falando apenas de mais um jogo de terror na pilha infindável de lançamentos que tentam nos assustar com barulhos repentinos ou monstros de design duvidoso. Estamos falando de uma obra concebida por mentes que compreendem a arquitetura do desconforto: Cory Davis, que já nos arrastou para o inferno bélico e moral de Spec Ops: The Line, e Robin Finck, cujas guitarras no Nine Inch Nails já serviram de trilha sonora para muitos dos nossos abismos pessoais.

Quando soube dessa união sob o selo da Blumhouse Games, confesso que criei uma expectativa perigosa, daquelas que costumam preceder grandes decepções. Afinal, a promessa de unir o horror psicológico com uma estética psicodélica em primeira pessoa soa como a receita perfeita para o tipo de obra que eu tenho para mim como ideal: aquela que não apenas te assusta, mas te desorienta, que te tira o chão. E é exatamente sobre essa desorientação, sobre os momentos em que ela brilha com uma luz cegante e sobre os momentos em que ela tropeça nas próprias pernas, que precisamos conversar.
A Última Cidade e o Silêncio
A narrativa nos transporta para The Crush, a última metrópole remanescente em uma Terra devastada, onde dormir não é apenas sinônimo de improdutividade, mas uma sentença de desaparecimento literal. O fenômeno conhecido como “The Hush” apaga aqueles que sucumbem ao sono, deixando para trás apenas o eco visual de sua existência, uma silhueta etérea que serve de lembrete constante do fim. Você assume o papel de Katja, uma jovem sobrevivente que navega por esse labirinto urbano de concreto brutalista e medo constante, tentando manter os olhos abertos através de estimulantes químicos e força de vontade enquanto busca salvar o que restou de sua família, especificamente uma figura materna chamada Amma.

O que me fascina aqui, e vejam bem, não é algo que eu digo com leviandade, é a construção de mundo que a equipe da Eyes Out conseguiu erguer. The Crush não é apenas um cenário de videogame; é um personagem que respira, tosse e agoniza. As facções que controlam a cidade criam um tecido social verossímil dentro do absurdo total. De um lado, temos o Delta Transport Ministry, ou DTM, uma organização burocrática e fascista que distribui drogas para manter a população acordada e dócil; do outro, cultos fanáticos que veneram a dor e a automutilação como as únicas formas puras de vigília. É uma distopia que flerta com o horror corporal e a teologia distorcida, lembrando-me muito das visões febris de Dark City ou até mesmo dos pesadelos industriais de David Lynch. A história de Katja demora um pouco a engrenar, é verdade. O início é lento, quase letárgico, mas ganha uma tração emocional genuína conforme avançamos e percebemos que não é apenas sobre fugir de monstros, mas sobre o luto, sobre a memória e sobre o custo humano de se manter funcional em um mundo que não oferece mais sonhos.
Caminhar, Observar e Se Esconder
Agora, se a ambientação é um prato cheio para quem gosta de narrativas densas, a jogabilidade por vezes parece não saber que talheres usar. Sleep Awake se posiciona em um terreno híbrido e pantanoso entre o “walking simulator” narrativo e o jogo de furtividade em primeira pessoa. E é aqui, minha gente, que a experiência oscila de uma maneira que chega a ser frustrante. A exploração é, sem dúvida, o ponto alto. Caminhar pelos corredores decrépitos de The Crush, investigando apartamentos abandonados onde a vida foi interrompida no meio de uma refeição ou de uma frase, é imersivo e tenso. O jogo sabe criar atmosfera como poucos, utilizando a narrativa ambiental para contar histórias tristes de quem perdeu a batalha contra o sono.

No entanto, quando o jogo decide que você precisa ser furtivo, a coisa desanda. A mecânica de stealth é funcional, mas terrivelmente datada, de uma preguiça criativa que destoa do resto da produção. Você se agacha, se esconde nas sombras ou debaixo de mesas, espera o padrão de patrulha do inimigo passar e avança. Os inimigos, muitas vezes homens genéricos com máscaras de gás e bastões, parecem ter saído de um catálogo de clichês de jogos de terror de quinze anos atrás. Falta aquela inteligência artificial orgânica que te faz suar frio, aquela imprevisibilidade que transformava Alien: Isolation em um teste cardíaco. Aqui, você se esconde não porque está aterrorizado pela presença do inimigo, mas porque o jogo diz que é hora de se esconder e, se você for visto, é “game over”. É uma oportunidade perdida de integrar o terror do sono, a alucinação e a fadiga nas próprias mecânicas de confronto de forma mais criativa. Felizmente, o jogo não se apoia inteiramente nisso, e os momentos de pura exploração compensam a simplicidade quase ofensiva desses encontros.
A Lógica do Delírio
Onde Sleep Awake realmente tenta, e muitas vezes consegue, inovar é na tradução da fadiga e da psicodelia para as mecânicas de jogo. A necessidade de Katja de se manter acordada não é apenas um recurso de roteiro, mas algo que afeta a sua percepção da realidade e a própria interface do jogo. Existem puzzles ambientais que exigem que manipulemos essa percepção, utilizando runas e frequências sonoras para alterar o ambiente, uma mecânica que me lembrou vagamente os puzzles de perspectiva de Hellblade, mas com uma roupagem muito mais suja e industrial.

Um detalhe que achei de uma elegância ímpar é como o jogo lida com o fracasso. Ao falhar em uma sequência de furtividade ou sucumbir ao ambiente, não somos presenteados com uma tela de carregamento estática e sem graça. Em vez disso, somos lançados em um limbo onírico, um túnel surreal e escuro com uma luz distante. Precisamos caminhar em direção a essa luz para retornar à realidade, e o mundo vai se materializando, se reconstruindo ao nosso redor conforme voltamos à vida. É um toque que mantém a imersão, transformando o “game over” em parte da viagem psicodélica, reforçando a ideia de que a fronteira entre estar acordado, dormindo ou morto é muito tênue naquele lugar. Os quebra-cabeças em si variam entre o mundano (encontrar fusíveis, ligar geradores) e o criativo, muitas vezes exigindo que entendamos a lógica distorcida dos cultos locais para progredir. Não espere desafios que vão fritar o seu cérebro, mas eles servem bem ao propósito de dar ritmo à narrativa, impedindo que o jogo se torne apenas uma longa e deprimente caminhada.
Uma Ópera Visual e Sonora
Visualmente, Sleep Awake é de uma beleza grotesca que merece ser celebrada em praça pública. A direção de arte optou por uma paleta de cores que foge do cinza e marrom típicos do pós-apocalipse, abraçando neons vibrantes, distorções cromáticas agressivas e uma iluminação que parece ferir os olhos, simulando a fotossensibilidade de quem está acordado há dias. O jogo integra sequências de FMV, ou seja, vídeos com atores reais, que invadem a tela como alucinações intrusivas ou memórias fragmentadas. É uma escolha estética arriscada, que poderia facilmente cair no cafona ou parecer um jogo de CD-ROM dos anos 90, mas aqui funciona magnificamente para criar uma sensação de desconexão. Você nunca tem certeza absoluta se o que está vendo é um modelo 3D, um vídeo ou uma projeção da mente cansada de Katja. Lembra o que a Remedy fez em Alan Wake 2, mas com uma textura mais granulada, mais “punk”.

Mas o que realmente eleva a experiência, o que te pega pelo colarinho e não solta, é o áudio. O trabalho de Robin Finck não é apenas uma trilha sonora; é um design de som que age como uma camada física de pressão sobre o jogador. Os sons industriais, os zumbidos constantes de maquinaria, a música que oscila entre o melancólico piano e o ruído abrasivo de guitarras distorcidas constroem uma paisagem sonora que te deixa em estado de alerta constante. Joguei com um bom par de fones de ouvido e posso dizer que a mixagem é primorosa. Você ouve os passos, o respirar ofegante e desesperado de Katja, e os sons indescritíveis de The Hush rastejando nas bordas da sua percepção periférica. É um daqueles jogos raros onde o silêncio é tão ou mais aterrorizante do que o barulho.
No Coração da Máquina
Para esta análise, rodei o jogo em uma configuração que considero bastante representativa do PC gamer intermediário para avançado atual: um processador Ryzen 7 5700x, acompanhado de uma RTX 4060 e 32GB de RAM. A performance foi, em sua maior parte, sólida, mas não isenta de ressalvas importantes que precisam ser mencionadas. O jogo é visualmente denso e a utilização intensa de efeitos de pós-processamento para simular a psicodelia pesa bastante na placa de vídeo.
Em resolução 1080p, consegui manter uma taxa de quadros estável acima dos 60fps na maior parte do tempo, com as configurações gráficas no alto. No entanto, notei algumas quedas perceptíveis, os chamados “frame drops”, em áreas mais abertas de The Crush ou durante as transições mais caóticas entre o mundo real e as alucinações, onde a taxa caía para a casa dos 40fps, gerando um engasgo visual. O uso do DLSS (Deep Learning Super Sampling) da Nvidia foi absolutamente essencial para garantir a fluidez nos momentos mais exigentes. Sem ele, a RTX 4060 sofria para manter a estabilidade nas cenas com muitas partículas e sobreposições de vídeo.

Outro ponto que me incomodou um pouco foi uma sensação de peso nos controles, um certo “input lag” que parece ser intencional para simular o cansaço da protagonista, mas que às vezes atrapalha na precisão dos movimentos durante as seções de furtividade. Não encontrei bugs catastróficos que quebrassem o jogo ou corrompessem o save, o que já é um alívio imenso considerando o estado deplorável de alguns lançamentos recentes, mas houve momentos de “stuttering”, aquelas travadinhas chatas ao carregar novas áreas, algo que pode ser atribuído à forma como o jogo gerencia o carregamento de ativos em tempo real. No geral, é um jogo competente tecnicamente, mas que pede uma máquina robusta e bem configurada para brilhar em toda a sua glória alucinógena sem frustrar o jogador com lentidão.
O Veredito
Ao final dessa jornada exaustiva e fascinante, Sleep Awake se revela uma daquelas obras que vão polarizar opiniões com a força de um ímã industrial. Se você é o tipo de jogador que busca um terror de sobrevivência focado em mecânicas precisas, combate tenso, gerenciamento de inventário e uma furtividade complexa e recompensadora, sinto lhe dizer que você vai sair daqui frustrado. As mecânicas de “jogo”, no sentido mais tradicional da palavra, são o elo mais fraco dessa corrente. Elas funcionam, sim, mas não inspiram, não trazem nada de novo e, em alguns momentos, até atrapalham o ritmo.
No entanto, se você, assim como eu, valoriza a atmosfera, a narrativa, a construção de mundo e a ousadia artística acima da perfeição técnica das mecânicas, então este jogo é uma viagem imperdível. É uma experiência que ousa ser estranha, que não tem medo de te confundir, de ser visualmente agressiva e que utiliza a mídia dos videogames para explorar temas como luto, consciência e trauma coletivo de uma forma que o cinema ou a literatura não conseguiriam replicar da mesma maneira imersiva.
Cory Davis e Robin Finck criaram algo que, apesar de suas falhas evidentes e de seus momentos de monotonia, possui uma alma pulsante, inquieta e barulhenta. Não é uma obra-prima irretocável, longe disso. É um “filme B” de luxo, um pesadelo do qual, curiosamente, você não vai querer acordar tão cedo. É um jogo que fica com você, ecoando na sua mente como aquele zumbido no ouvido depois de um show de rock muito alto em um lugar muito pequeno. E no mercado atual, tão saturado de sequências seguras, remakes sem sal e jogos feitos por comitês focados apenas em lucro, essa originalidade corajosa, mesmo que imperfeita, vale cada minuto do seu tempo e cada centavo do seu investimento. Sleep Awake é uma descida ao inferno que eu faria novamente, nem que fosse apenas para ouvir aquele piano arrepiante mais uma vez.
NOTA
CONSIDERAÇÕES
Sleep Awake é uma daquelas obras que você joga não porque é divertido apertar botões, mas porque ela te faz sentir coisas que você nem sabia que estavam lá. Mecanicamente, ele é um jogo preso no passado, com uma furtividade que beira o rudimentar e momentos que testam a sua paciência. Mas artisticamente? É um colosso. A construção desse mundo que morre se dormir, somada à trilha sonora visceral do Robin Finck, cria uma atmosfera tão densa que você quase consegue mastigar o ar. É um jogo que eu recomendo com ressalvas, mas recomendo com força: jogue pelas sensações, pela ousadia e pelo visual alucinante, e perdoe o fato de que, como jogo, ele às vezes tropeça nos próprios cadarços. É uma experiência imperfeita, mas com uma alma gigantesca.
