Confesso que entrei nessa de pé atrás. Quando o anúncio de Mars Attracts surgiu, prometendo reviver uma licença cinematográfica de quase 30 anos na forma de um… jogo de gerenciamento de parque temático, meus olhos reviraram com a força de um buraco negro. Parecia a receita perfeita para o desastre: uma apropriação cínica de nostalgia, embalada em um gênero de nicho. Eu me preparei para o pior, para um produto feito às pressas, sem alma, existindo apenas para capitalizar em cima de um filme que muitos sequer lembram. Mas, às vezes, muito raramente, o universo gosta de nos pregar peças. E que peça deliciosa foi descobrir que eu estava redondamente enganado.
Desenvolvido pelo estúdio irlandês Outlier, uma equipe com um histórico em criar ordem a partir do caos estratégico, Mars Attracts não é apenas um bom jogo; é uma das sátiras mais inteligentes e perversamente viciantes que tive o prazer de jogar nos últimos anos. Ele não se contenta em usar o filme de Tim Burton como uma mera skin, mas mergulha de cabeça no seu humor ácido e na sua crítica social para criar uma experiência que é, ao mesmo tempo, familiar e chocantemente original. Prepare seus pires voadores e ajuste sua arma de raios, porque a temporada de caça aos humanos está aberta, e os lucros, meus caros, são estratosféricos.
O CEO de Cabeça Grande
Diferente de outras adaptações que nos forçam a seguir um roteiro pré-definido, a “história” em Mars Attracts é a que nós mesmos escrevemos. Você não é um herói relutante ou um soldado genérico. Você é algo muito mais aterrorizante: um CEO. No papel de um executivo marciano encarregado de transformar um pedaço empoeirado de Marte no destino turístico mais quente da galáxia, seu objetivo é um só: lucro. E o recurso mais valioso do planeta vermelho? Aparentemente, somos nós.
Não há uma campanha épica aqui, e isso é um elogio. A narrativa emerge da própria jogabilidade, das pequenas decisões moralmente questionáveis que você toma a cada minuto. É a história de como você decide tratar seus “espécimes”: você vai construir um habitat perfeito para um grupo de romanos, com direito a aquedutos e mosaicos, para maximizar o valor educacional (e os ingressos), ou vai jogá-los em uma arena com um robô de boxe para o puro deleite sádico dos seus visitantes? Cada escolha molda a narrativa do seu parque, transformando-o em um zoológico humano relativamente ético ou em um gulag intergaláctico com uma loja de souvenirs. É uma crítica brilhante à cultura do entretenimento, que nos força a encarar o quão tênue é a linha entre observação e exploração.
O Circo dos Horrores Lucrativo
O loop de gameplay é diabolicamente simples e viciante. Primeiro, você envia expedições à Terra. Essas missões, que se desenrolam em um mapa-múndi, permitem abduzir humanos de diferentes eras – homens das cavernas, cowboys, cavaleiros medievais – e também surrupiar pedaços de suas decorações nativas. Com a carga preciosa a bordo, o trabalho de verdade começa.
Cada grupo de humanos tem necessidades e traços específicos. Um viking não vai ficar feliz em um ambiente vitoriano, e um homem da fronteira americana pode tentar usar um cacto como arma se ficar entediado. Construir o habitat perfeito, gerenciando suas necessidades sociais, de entretenimento e de alimentação, é um quebra-cabeça fascinante que lembra os melhores momentos de Zoo Tycoon ou Planet Zoo. A diferença, claro, é o propósito. Você não está fazendo isso pela conservação da espécie, mas para que eles estejam nas melhores condições possíveis para… a próxima etapa.
É aqui que o jogo revela sua verdadeira e gloriosa face. Seus clientes marcianos não querem apenas ver humanos vivendo. Eles querem ver coisas acontecendo com eles. E é aí que entram os experimentos, as armadilhas e a pura e simples tortura científica, tudo em nome do entretenimento e, claro, da pesquisa. Mars Attracts subverte brilhantemente a fórmula de jogos como Theme Hospital; aqui, os “pacientes” não são os clientes, são os recursos, e o objetivo não é curá-los, mas explorá-los da forma mais lucrativa possível.
A Ciência da Maldade
O que eleva Mars Attracts acima de um simples clone de RollerCoaster Tycoon com alienígenas é a sua genialidade mecânica, especialmente no sistema de pesquisa. Ele é dividido em duas vertentes complementares e igualmente cruéis. A primeira envolve a construção de postos de observação nos habitats, onde cientistas marcianos conduzem experimentos para gerar pontos de pesquisa. A segunda vertente é o “Workshop”. E é aqui que as coisas ficam… nojentas. Precisa desbloquear aquela nova e empolgante barraca de balões? Simples: basta dissecar alguns dos seus humanos. Essa ação, que remove permanentemente o espécime do seu parque, gera um recurso chamado “amostras”, que é usado para desbloquear novas atrações.
A piada macabra é que tudo que você constrói a partir do Workshop é visivelmente feito de partes humanas. É grotesco, hilário e uma mecânica de gerenciamento de recursos inesquecível. O gerenciamento de sua equipe marciana adiciona outra camada, com funcionários possuindo traços que mudam o jogo, como um cientista que conta como dois ou um zelador que reduz o salário de seus colegas. No entanto, há um atrito intencional aqui: os dois sistemas de pesquisa parecem desconectados, e a taxa de degradação dos edifícios exige atenção constante, criando um desafio de microgerenciamento que, às vezes, beira o irritante, mas que te mantém sempre alerta. E, caso você se canse de tudo isso, há até mesmo um bizarro e secreto jogo de “dating sim” escondido, um easter egg que prova que os desenvolvedores não têm medo de abraçar o absurdo.
Retrofuturismo Agressivo
Visualmente, o jogo é um deleite. A Outlier acertou em cheio ao não buscar o fotorrealismo, optando por uma direção de arte estilizada que captura perfeitamente a estética pulp e de filme B dos anos 50 que inspirou não apenas o longa de Burton, mas os chocantes e originais cards de 1962. Na verdade, com sua crueldade cômica e foco na experimentação, o jogo é espiritualmente mais próximo dos cards do que do filme. As cores são vibrantes e saturadas, com os vermelhos de Marte contrastando com o néon berrante das atrações.
A paisagem sonora complementa a experiência de forma magistral. A trilha sonora é uma fanfarra de ficção científica clássica, com metais grandiosos e o uso onipresente e maravilhoso do teremim, que parece sublinhar cada decisão absurda que você toma. A narração marciana, seca e sarcástica, é um destaque, oferecendo comentários ácidos sobre o comportamento dos humanos e a ganância dos visitantes. E, claro, o som icônico dos raios marcianos – “Ack! Ack! Ack!” – está presente, funcionando como a cereja no topo deste bolo sonoro delicioso e caótico.
Um Diamante Bruto em Acesso Antecipado
Agora, vamos à parte técnica, o cerne da experiência no PC. É preciso ser claro: Mars Attracts está em Acesso Antecipado, e ele se comporta como tal. Mas aqui reside a maior surpresa. Na minha máquina, equipada com um Ryzen 7 5700x, uma RTX 4060 e 32GB de RAM, a experiência foi chocantemente suave. Jogando em 1080p nativo com todas as configurações no máximo, a taxa de quadros se manteve consistentemente acima dos 110 fps, mesmo com o parque cheio de visitantes e espécimes em pânico.
Isso aponta para um núcleo de otimização muito sólido. O estilo gráfico certamente ajuda, mas a fluidez com que o jogo roda é um feito notável para uma equipe independente em Acesso Antecipado. Não encontrei opções de DLSS ou FSR no momento, o que seria uma adição bem-vinda para garantir longevidade em hardwares mais modestos ou em resoluções mais altas. No entanto, a performance nativa na minha configuração foi tão robusta que a ausência dessas tecnologias não chegou a ser um problema. Contudo, o status de “Early Access” se manifesta de outras formas. Encontrei alguns bugs e a variedade de decorações é limitada. Mas a fundação é rochosa. O jogo não quebra, não engasga; ele apenas mostra, com um charme desajeitado, que ainda é uma obra em progresso, moldada ativamente pelo feedback da comunidade.
Ack Ack, Humanidade!
Mars Attracts tinha tudo para ser esquecível, mas se recusa a sê-lo. Ele é a prova de que uma licença não precisa ser uma âncora, mas pode ser um trampolim para a criatividade. O jogo funciona em tantos níveis que é difícil não se impressionar. Como um simulador de parque, ele é robusto e desafiador. Como uma comédia, ele é sombrio, afiado e genuinamente engraçado. E como uma sátira, ele é uma facada certeira no coração da nossa cultura de consumo, que transforma tudo e todos em produto.
Ele nos coloca no comando da invasão, nos faz cúmplices do absurdo e, no processo, nos força a rir de nós mesmos. A maior piada, no fim das contas, não são os marcianos de cérebro grande e suas armas de raios, mas a constatação de que, para sermos transformados na atração principal de um circo intergaláctico, talvez não falte tanto assim. Mars Attracts não é apenas uma das maiores surpresas de 2025; é um lembrete de que os melhores jogos são aqueles que nos fazem pensar enquanto nos divertimos diabolicamente. E, por isso, ele merece muitos os “Acks” de aprovação.
NOTA
CONSIDERAÇÕES
Mars Attracts é uma anomalia gloriosa: uma adaptação de licença que não só funciona, como se torna um dos jogos de gerenciamento mais inteligentes e diabolicamente divertidos dos últimos tempos. Apesar das arestas naturais de um título em Acesso Antecipado, sua fundação é sólida, sua sátira é afiada e seu potencial é imenso. Se você tem um senso de humor sombrio e aprecia um design que subverte as convenções do gênero, esta é uma abdução que você não vai querer evitar.
