Vamos ser honestos: o gênero de extraction shooter está saturado, talvez até um pouco cansado. Ele se estabeleceu em um ciclo de masoquismo glorificado, onde a adrenalina do risco é inseparável de uma frustração quase punitiva. Jogos como Escape from Tarkov criaram um império sobre essa fundação de realismo brutal, mas também ergueram barreiras intransponíveis para quem não tem dezenas de horas semanais para dedicar ao altar do “git gud”. É nesse cenário, previsível e um tanto estagnado, que Active Matter surge. E ele não chega pedindo licença. Ele chega como uma tese, uma declaração audaciosa de que o gênero pode, e deve, ser mais do que isso.
Desenvolvido pela Matter Team e publicado pela Gaijin Entertainment, Active Matter se apresenta como a fusão que muitos de nós sonhávamos em segredo: o horror atmosférico e opressivo de S.T.A.L.K.E.R. com a premissa de alto risco de um shooter de extração. A premissa é pura ficção científica de alta voltagem: somos operativos presos em um loop temporal, condenados a reviver o mesmo ponto indefinidamente. Nossa única rota de fuga aparente é mergulhar em “zonas quânticas instáveis”, bolsões de realidade desmoronada, para coletar a “matéria ativa”, uma substância que é, ao mesmo tempo, o recurso mais valioso do multiverso e a fonte de sua desintegração. Essa matéria não é apenas um item de loot; é a força motriz da loucura, a justificativa diegética para as anomalias que distorcem a física e transformam o campo de batalha em um pesadelo de Escher.
Minha análise, portanto, se debruça sobre uma questão fundamental: essa tapeçaria de ideias brilhantes, o combate vertical, a economia permissiva, a fusão de PvP e PvE, consegue se costurar em uma identidade coesa e sustentável? Ou a ambição desmedida de misturar tantos elementos complexos resultará em um colapso igualmente espetacular? E, pairando sobre cada promessa, cada mecânica inovadora, está a sombra da Gaijin Entertainment, uma publicadora cuja reputação por modelos de monetização agressivos gera uma desconfiança quase palpável na comunidade. A promessa de Active Matter é imensa, mas o abismo do fracasso é igualmente profundo. E eu passei as últimas semanas caminhando exatamente nessa borda.
A Dança da Morte em Gravidade Zero
Cada incursão em Active Matter começa com a mesma quietude enganosa. No abrigo, meu personagem verifica o equipamento. Uma Vepr-KM, algumas bandagens, um punhado de munição extra. O silêncio é pesado, denso, a calmaria antes de uma tempestade que eu sei que virá. O clique do botão “Deploy” é o trovão distante. A tela de carregamento some e eu estou na Dalniy Island, um cemitério de ambição soviética onde a ferrugem e o concreto disputam cada centímetro de terra. O ar é frio. O silêncio inicial é quebrado não por tiros, mas por um som gutural e úmido vindo de dentro de um armazém.
Meu primeiro contato não é com outro jogador, mas com as abominações que a matéria ativa pariu. Os monstros aqui não são meros obstáculos; são predadores. Rápidos, letais e numerosos, eles me forçam a pensar em cada passo. Correr cegamente é um convite à morte. Eles drenam minha munição, minhas bandagens e, o mais importante, minha compostura. O som dos meus disparos ecoa pela ilha, um farol para a ameaça mais perigosa de todas: outros humanos.
É então que vejo a anomalia. O ar dentro de um prédio de escritórios abandonado ondula, como o calor subindo do asfalto. Entro com cautela e a gravidade se desfaz. O chão se torna uma sugestão, não uma regra. Com um salto, estou correndo pela parede, o teto agora ao meu lado. A desorientação inicial dá lugar a uma epifania tática. Isso não é um truque barato; é uma camada estratégica que redefine fundamentalmente o combate. Cada estrutura se torna um quebra-cabeça tridimensional, cada confronto uma oportunidade para flanquear de ângulos que seriam impossíveis em qualquer outro jogo. A verticalidade aqui não é uma opção, é uma constante.
Passos. Metálicos, apressados. Um esquadrão de dois jogadores se move no pátio abaixo. Eles não me viram. Perto deles, um aglomerado de casulos pulsantes que eu reconheço como um ninho de “Flowermen”. De minha posição na parede, tenho um ângulo claro. Um tiro. Não neles, mas nos casulos. A explosão de esporos desperta a fúria do ninho. As criaturas, ágeis e cegas de raiva, se lançam sobre o som mais próximo, o esquadrão inimigo. O caos é a minha cobertura. Desço para o chão enquanto eles lutam por suas vidas contra o enxame e os elimino no meio da confusão. Essa simbiose entre PvP e PvE é o coração pulsante e cruel de Active Matter. Você nunca é apenas o caçador; a cada segundo, você pode se tornar a presa, e a linha entre os dois é tão instável quanto a própria realidade.
O cronômetro da incursão pisca em vermelho. A zona está colapsando, uma parede de estática quântica consumindo o mapa. A extração é uma corrida desesperada. O ponto de extração mais próximo está em um cais, mas sei que não estarei sozinho. Os monstros parecem ser atraídos para esses locais, uma decisão de design intencional para transformar cada fuga em um último ato de desespero. Com o som de tiros ao longe e o zumbido da zona se aproximando, eu ativo o sinal. O alívio que sinto quando a tela escurece e as palavras “Extraction Successful” aparecem é algo que poucos jogos conseguem evocar. É um alívio visceral, conquistado a duras penas.
É nesse ciclo que a genialidade do design de Active Matter se revela. O gênero é atormentado pela passividade, pelo camping como estratégia ótima. Aqui, isso é impossível. A pressão implacável de um PvE que é uma ameaça real, as anomalias que destroem qualquer noção de “posição segura” e a zona que encolhe forçam o movimento constante. A ausência de campers, algo que a comunidade notou com surpresa, não é um acidente. É o resultado deliberado de um design que entende a maior fraqueza de seu gênero e a ataca de frente com uma fúria calculada.
A Máquina por Trás da Loucura
Se o gameplay é a alma caótica de Active Matter, suas mecânicas são o maquinário preciso que permite que essa alma floresça sem devorar o jogador. E o problema central que ele se propõe a resolver é o mais antigo do gênero: o “gear fear”, o medo paralisante de perder seu equipamento suado. A solução da Matter Team é elegante e multifacetada. No seu abrigo, duas máquinas são suas melhores amigas: o “Refiner” e o “Replicator”. Qualquer item extraído de uma zona, de um livro velho a uma placa de armadura, pode ser jogado no Refiner para gerar dinheiro e materiais de crafting. O Replicator, por sua vez, usa esses materiais para imprimir cópias de equipamentos que você já encontrou. Isso não elimina o risco, mas o amortece de forma brilhante. Perder aquele rifle de precisão modificado deixa de ser uma catástrofe que exige horas de grind para se recuperar; torna-se um contratempo, um obstáculo a ser superado.
Até mesmo a abordagem ao contêiner seguro, o famoso “gamma” de Tarkov, foi repensada. Aqui, ele é um item consumível, usado uma vez por vida. Antes de cada incursão, você faz uma escolha tática: invisto em um contêiner caro para proteger aquele item raro que preciso extrair, ou vou leve e barato? É uma camada de gerenciamento de risco que devolve a agência ao jogador de uma forma que parece justa e equilibrada.
O combate armado em si é sólido. As mais de 60 armas têm peso, recuo e um som impactante que as torna satisfatórias de usar. A variedade é boa, indo de pistolas básicas a fuzis de assalto e bestas táticas. Onde o sistema tropeça, no entanto, é na profundidade. A personalização de armas, embora presente, é superficial quando comparada aos padrões estabelecidos por seus concorrentes. A ausência de tipos de munição variados, perfurante, expansiva, subsônica é, na minha opinião, a maior lacuna no momento. Essa omissão simplifica o combate, mas remove uma camada de planejamento e conhecimento tático que os veteranos do gênero valorizam profundamente.
Para compensar, o jogo oferece um arsenal de ferramentas que expandem o combate para além do tiroteio. Drones FPV podem ser usados para reconhecimento ou para soltar uma granada surpresa na cabeça de um inimigo desavisado. O cão-robô, quando não está bugando e caindo através do mapa, atua como uma mula de carga, permitindo que você extraia mais loot. E a presença de veículos, de quadriciclos a blindados, introduz uma nova dinâmica de mobilidade e poder de fogo que pode virar o jogo em mapas maiores.
Essas decisões mecânicas, especialmente a economia generosa, têm um efeito cascata que define toda a experiência. Ao reduzir drasticamente o medo de perder equipamento, o jogo não apenas diminui a frustração; ele incentiva a agressividade e a experimentação. Jogadores se sentem mais livres para testar armas caras, para buscar confrontos em vez de evitá-los. Essa propensão ao combate alimenta diretamente o ciclo de caos do PvPvE, onde um tiroteio atrai monstros, que por sua vez criam aberturas táticas. A economia permissiva não é um modo fácil. É o catalisador que alimenta a visão central do jogo: um campo de batalha imprevisível, emergente e perpetuamente em movimento.
A Estética da Entropia Soviética
Active Matter é visualmente deslumbrante, mas não de uma forma tradicionalmente “bonita”. Sua direção de arte é uma carta de amor à decadência, uma ode à estética da era soviética filtrada por uma lente de ficção científica distorcida e quebrada. A arquitetura brutalista dos complexos industriais, os laboratórios de pesquisa abandonados e a paleta de cores dessaturada criam uma atmosfera de melancolia profunda e perigo iminente. É um mundo que parece cansado, um lugar que já desistiu muito antes de você chegar. A iluminação, em particular, é uma estrela, com raios de sol cortando a poeira em um galpão ou a luz fria da lua revelando a silhueta de algo disforme se movendo entre as árvores.
É claro que as anomalias são o principal espetáculo visual. Elas rasgam o tecido da realidade com efeitos alucinógenos, distorções de luz e terreno que se deforma diante dos seus olhos. Ver um corredor se dobrar sobre si mesmo ou a gravidade se inverter em uma sala é genuinamente perturbador e visualmente cativante. No entanto, essa ambição visual vem com um custo em um jogo de Acesso Antecipado. Ocasionalmente, a imersão é quebrada por glitches visuais, texturas que demoram a carregar, pop-ins de objetos e outros artefatos que nos lembram que este universo, tanto diegeticamente quanto tecnicamente, ainda é instável.
O design de som, no entanto, é talvez o pilar mais forte da apresentação do jogo. Ele é meticulosamente construído para gerar uma sensação constante de pavor. O som das armas é o primeiro componente: cada disparo tem um eco distinto, um peso que transmite sua letalidade. Os desenvolvedores estão claramente obcecados com isso, lançando atualizações que ajustam o alcance audível de armas silenciadas ou reformulam completamente o som de um fuzil específico.
O segundo componente é o som ambiente. O silêncio em Active Matter é uma arma psicológica. Ele é denso, opressivo e quase sempre quebrado por algo que você não queria ouvir: o arrastar de garras no concreto, o grito distante de uma criatura desconhecida, o zumbido sutil que indica uma anomalia próxima. O som dos “homens invisíveis”, um brilho quase imperceptível acompanhado por um som de estática, é particularmente eficaz em induzir paranoia.
A trilha sonora em si é minimalista e atmosférica, servindo para acentuar a tensão em vez de ditar o ritmo. A equipe de desenvolvimento também demonstrou uma notável consciência moderna ao incluir músicas licenciadas que são seguras para streaming, um pequeno detalhe que mostra respeito pela comunidade de criadores de conteúdo.
O Teste de Estresse no Multiverso
Nenhum jogo em Acesso Antecipado escapa do escrutínio técnico, e Active Matter, com sua ambição sistêmica, é um caso particularmente interessante. Testei o jogo em meu PC, equipado com um processador AMD Ryzen 7 5700X, uma placa de vídeo NVIDIA GeForce RTX 4060 com 8GB de VRAM e 32GB de memória RAM DDR4, com o jogo instalado em um SSD NVMe. Minha arena de testes foi a resolução de 1440p, alternando entre as predefinições gráficas.
Na minha máquina, com as configurações no “Ultra” em 1440p, a taxa de quadros flutuou bastante. No abrigo, eu conseguia sólidos 100-120 FPS. Explorando os mapas, a média ficava em torno de 80-90 FPS, o que é perfeitamente jogável. Durante combates intensos, no entanto, com múltiplos monstros, jogadores e efeitos de anomalias na tela, as quedas para a faixa de 60-70 FPS eram comuns.
À Beira do Abismo ou da Grandeza?
Ao final de dezenas de incursões, mortes e extrações triunfantes, uma coisa é clara: Active Matter é uma das tentativas mais brilhantes e calculadas de consertar os problemas fundamentais de seu gênero. Suas mecânicas de economia e risco são uma lufada de ar fresco, e seu gameplay loop, impulsionado por um PvE implacável e anomalias caóticas, é um antídoto potente para a estagnação e a passividade que afligem seus pares. A atmosfera é densa, o combate é visceral e, em seus melhores momentos, o jogo oferece uma experiência única.
Mas Active Matter é, em sua essência, uma obra de contradições. É brutalmente “hardcore” na tensão de seu combate, mas surpreendentemente “acessível” em sua economia. É um espetáculo visual, mas atormentado por instabilidade técnica. É o produto de uma equipe de desenvolvimento que parece apaixonada e atenta ao feedback da comunidade, mas é distribuído por uma publicadora cuja reputação a precede e gera uma ansiedade legítima sobre o futuro.
Não podemos ignorar o fator Gaijin. O modelo de passes consumíveis para incursões PvE solo e as múltiplas edições de pré-venda com vantagens iniciais são sinais que a comunidade observa com o olhar atento de quem já foi queimado antes. O sucesso a longo prazo deste projeto dependerá tanto da capacidade dos desenvolvedores de polir esta joia bruta quanto da contenção da publicadora em não espremê-la até a morte em busca de lucro.
Active Matter não é, neste momento, um jogo para todos. Talvez nem seja um jogo “pronto” no sentido convencional da palavra. É um laboratório de física quântica disfarçado de videogame, um experimento volátil que pode tanto explodir em uma glória espetacular quanto implodir sob o peso de sua própria ambição. Ele existe, agora, em um estado de superposição quântica: é, simultaneamente, uma das experiências mais frustrantes e uma das mais eletrizantes que tive em anos. A questão não é se você deve entrar nesta zona instável, mas se você está preparado para a possibilidade de que ela, e seu investimento, possa simplesmente deixar de existir a qualquer momento. E, por mais aterrorizante que essa ideia seja, é precisamente essa incerteza que o torna tão irresistivelmente atraente.
NOTA
CONSIDERAÇÕES
Active Matter é uma das propostas mais inteligentes e audaciosas para o gênero de extraction shooter em anos. Ele ataca de frente os maiores problemas do gênero, como o medo de perder equipamento e a jogabilidade passiva, com mecânicas de economia e um design de PvPvE que forçam a ação constante. No entanto, por ser um título em Acesso Antecipado, ainda sofre com instabilidade técnica e falta de profundidade em alguns sistemas. É um experimento brilhante e volátil que, no momento, existe em um estado de superposição: é ao mesmo tempo uma das experiências mais eletrizantes e frustrantes que você pode ter, com um potencial imenso que depende criticamente do polimento futuro e das decisões de sua publicadora.