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Review | Discounty (PS5)

Existe um feitiço particular nos chamados “jogos aconchegantes”, uma promessa quase terapêutica de escape. Em um mundo que exige produtividade incessante, a fantasia de largar tudo para administrar uma livraria, uma fazenda ou, neste caso, um supermercado de cidade pequena, é um bálsamo. Quando Discounty surgiu no meu PlayStation 5, com sua arte pixelada charmosa e a premissa de uma vida simples repondo enlatados e cumprimentando vizinhos, eu me entreguei a essa fantasia. Fui convidado a Blomkest, uma cidade portuária decadente, para gerenciar a loja de uma tia misteriosa. A premissa era clara, o apelo, imediato. Era o trabalho perfeito para esquecer o mundo real.

Desenvolvido por um minúsculo estúdio de três pessoas, a Crinkle Cut Games, o jogo exala a paixão de um projeto de estreia. Cada pixel parece colocado com carinho, cada melodia inicial soa como um convite para relaxar. E, por algumas horas, eu relaxei. Organizei prateleiras, passei compras no caixa, senti a satisfação simples de um dia de trabalho bem feito. Mas, como em muitos empregos que parecem bons demais para ser verdade, a fachada sorridente logo começou a rachar. Por trás do balcão e dos corredores coloridos, uma verdade mais cínica e desconfortável emergia. A pergunta que o próprio marketing do jogo faz: “Vender mais batatas fritas congeladas certamente curará esta comunidade quebrada… certo?”, deixou de ser retórica e se tornou o eco melancólico de uma experiência que prometeu conforto e entregou, no fim das contas, um profundo cansaço existencial.

O Capitalismo Veste Prateleiras

Minha jornada em Blomkest não foi a de um empreendedor construindo um sonho, mas a de um funcionário relutante, uma engrenagem anônima em uma máquina corporativa cujo motor eu nunca via. A narrativa me posiciona como o suposto salvador da economia local, mas minhas ações, ditadas por uma tia ausente e implacável, servem apenas para expandir um império às custas da comunidade que eu deveria ajudar. Eu me vi forçado a monopolizar o mercado, a esmagar pequenos concorrentes e a ignorar os apelos dos moradores, tudo sem a menor possibilidade de escolha. Meu personagem, descobri com crescente frustração, tem a espinha dorsal de uma água-viva. Ele é um fantoche, e eu sou o titereiro forçado a puxar as cordas que enforcam a cidade.

Discounty

O jogo flerta com uma crítica social contundente, abordando a forma como grandes corporações engolem pequenos negócios e a exploração do trabalhador mal pago e sobrecarregado. É um tema potente, mas a execução é tímida, quase covarde. Os cidadãos de Blomkest vêm à minha loja, expressam seu descontentamento com meus preços predatórios e, no dia seguinte, voltam a comprar como se nada tivesse acontecido, perdoando-me com uma amnésia conveniente que drena qualquer peso ou consequência das minhas ações. A crítica, portanto, fica sem dentes, uma reclamação sussurrada que nunca se torna um grito de revolta.

Essa superficialidade se estende à própria escrita. Interagir com os habitantes de Blomkest rapidamente se torna uma tarefa penosa. Os diálogos se repetem à exaustão, com personagens que parecem esquecer quem eu sou ou o que aconteceu na nossa última conversa, transformando o que deveria ser a construção de uma comunidade em um exercício de clicar para pular textos. A história não flui; ela é “enfiada à força entre os turnos de trabalho”, avançando aos solavancos, frequentemente bloqueada por metas arbitrárias, venda 30 latas de feijão, espere dois dias, que se sentem menos como progressão e mais como preenchimento de tempo. O clímax, quando finalmente chega, é apressado e anticlimático, deixando um gosto amargo de “só isso?” e a sensação de que a narrativa inteira foi um rascunho esquecido na sala dos fundos.

O Ciclo Hipnótico do Código de Barras

Confesso que no início, Discounty me fisgou. Há algo de profundamente hipnótico em seu ciclo de jogo principal. As tarefas são simples, tangíveis e, a princípio, imensamente gratificantes. Repor as prateleiras, varrer o chão, organizar o layout da loja para máxima eficiência, ouvir o bipe satisfatório do caixa, tudo isso cria um ritmo meditativo, uma sensação de ordem restaurada que é viciante. Por algumas horas, eu me perdi nesse fluxo, sentindo a dopamina de cada dia de trabalho concluído com uma avaliação positiva.

Mas a hipnose, como toda mágica barata, tem um fim. O que era meditativo torna-se monótono. O que era satisfatório torna-se uma obrigação. O ciclo viciante revela-se apenas… um ciclo. Após as primeiras três ou quatro horas, a novidade se esvai e o jogo se transforma naquilo que eu estava tentando evitar: um trabalho. A rotina de chegar, estocar, atender, limpar e ir para casa dormir apenas para repetir tudo no dia seguinte deixa de ser um escape e se torna um espelho da própria labuta que define a vida moderna. O jogo se transforma em uma tarefa, um item a ser riscado da lista de afazeres diários.

Discounty

O que agrava essa transição de prazer para obrigação é a gritante falta de um sistema de progressão significativo. Em jogos como Stardew Valley, cada gota de suor se traduz em crescimento visível e recompensador. Em Discounty, o progresso é uma ilusão, rigidamente atrelado aos caprichos da narrativa. Não há incentivo real para otimizar meu tempo ou ser o funcionário mais eficiente do mundo, porque meus esforços não me dão mais agência ou abrem novos caminhos. Eu poderia passar trinta dias no jogo fazendo absolutamente nada além do básico, e o estado do meu negócio mal mudaria. Essa desconexão entre esforço e recompensa é a falha fundamental do gameplay: ele me dá as ferramentas do trabalho, mas me nega os frutos do meu labor. E, ironicamente, para um jogo do gênero “aconchegante”, ele pode se tornar incrivelmente estressante. A necessidade de equilibrar reposição de estoque, limpeza e uma fila crescente de clientes impacientes transforma a calma prometida em uma ansiedade palpável, um malabarismo de pratos que ameaçam cair a qualquer momento.

A Aritmética da Monotonia

É nos detalhes, nas pequenas fricções do dia a dia, que a engrenagem de Discounty realmente emperra, especialmente na versão de PlayStation 5. A mecânica central de operar o caixa, por exemplo, é uma novidade que envelhece mal. A princípio, digitar manualmente os preços parece uma imersão charmosa na vida de um varejista. Na prática, torna-se um exercício de paciência, agravado por um controle que parece lutar contra você. Usar o analógico do DualSense para navegar na calculadora na tela é uma experiência “desajeitada” e “inconsistente”. Errar um número porque o cursor saltou para o lado errado é um pequeno aborrecimento que, repetido dezenas de vezes por dia, se acumula em uma frustração genuína.

Discounty

A promessa de estratégia na organização da loja também se revela vazia. O jogo sugere que a disposição das prateleiras pode incentivar compras por impulso, um elemento de planejamento tático. A realidade, contudo, é que o espaço limitado da loja e a simplicidade do sistema transformam a “estratégia” em pouco mais do que um Tetris de caixas e gôndolas. Não há profundidade real a ser explorada, apenas a tarefa funcional de garantir que os clientes consigam encontrar o que procuram.

Outros sistemas, como os acordos comerciais com produtores locais ou a reciclagem de papelão, parecem existir apenas para preencher uma lista de funcionalidades. São mecânicas superficiais que “não se prolongam demais, mas também não causam um impacto grande o suficiente para serem memoráveis”. Elas adicionam mais tarefas à sua rotina, mas não mais profundidade à experiência. E são as pequenas ausências, as deficiências de qualidade de vida, que mais irritam. A incapacidade de pular o resumo de vendas no final de cada dia, forçando-me a assistir a uma contagem lenta de dinheiro que eu já sei que ganhei. A velocidade glacial com que o texto do diálogo aparece na tela. A falta de um simples botão de reabastecimento automático. Cada um desses elementos é um grão de areia na engrenagem, um lembrete constante de que o jogo não está interessado em tornar minha vida mais fácil.

Píxeis Aconchegantes e Bipes Melancólicos

Se há uma área onde Discounty acerta em cheio, é em sua apresentação. Visualmente, o jogo é uma pequena joia. A arte em pixel 2D é executada com uma beleza e um cuidado que o destacam na multidão, com uma “paleta de cores vívida que nunca é monótona”. A comparação com o aclamado Eastward é justa; o uso de iluminação 3D sobre os cenários 2D confere uma profundidade e uma atmosfera que tornam o mundo de Blomkest palpável e convidativo. Os designs dos personagens são expressivos e caricatos, cada um com uma silhueta que comunica sua personalidade antes mesmo de uma linha de diálogo ser dita.

A trilha sonora complementa essa estética com perfeição. As músicas são descritas como “animadas e relaxantes, no estilo das novelas dos anos 80”, uma coleção de melodias simples, mas cativantes, que evocam uma nostalgia calorosa. Elas são o som de um tempo mais simples, uma trilha sonora para a fantasia que o jogo vende. É fascinante, no entanto, como essa apresentação aconchegante cria uma dissonância aguda com os temas mais sombrios e a jogabilidade frustrante. A música alegre que toca enquanto eu sou forçado a levar um pequeno negócio local à falência é um exemplo perfeito desse conflito. A atmosfera, por vezes, torna-se quase “inquietante” por causa desse contraste.

A Conta Que Não Fecha

Eu queria, com toda a sinceridade, amar Discounty. Ele chegou com todas as credenciais de um novo vício aconchegante: a arte cativante, a música relaxante, o ciclo de jogo que, nas primeiras horas, era pura e simples satisfação. Por um breve período, ele cumpriu sua promessa de ser um refúgio.

Mas, ao fechar o caixa pela última vez, o balanço final revela um déficit impossível de ignorar. A história que finge ter algo a dizer, mas recua no momento do impacto; o gameplay que seduz com a promessa de progresso, mas aprisiona em uma rotina sem recompensa; as mecânicas que adicionam fricção em vez de profundidade; e os bugs que assombram a experiência como fantasmas em uma loja mal-assombrada. O resultado é uma experiência “razoavelmente mediana”, um jogo cujas partes individuais são muito mais interessantes do que a soma final, deixando um persistente gosto de “não foi o suficiente”.

Discounty

Talvez o maior triunfo de Discounty seja inteiramente acidental. Ele fracassa espetacularmente como uma fantasia de poder e como um escape relaxante. Mas, em seu fracasso, ele se torna uma simulação desconfortavelmente precisa da futilidade do trabalho precário no varejo. Ele captura, com uma clareza que duvido ter sido intencional, o sentimento de ser uma peça impotente em um sistema que você não pode controlar, onde seus melhores esforços são recebidos não com uma recompensa, mas com a garantia de que amanhã será exatamente igual a hoje.

No fim, Discounty é como os produtos de suas próprias prateleiras: vem em uma embalagem brilhante e atraente, prometendo satisfação, mas, uma vez consumido, deixa você se sentindo vazio e enganado. A conta chega, e você percebe que pagou o preço de um produto de luxo por uma experiência de desconto. E essa é uma conta que, simplesmente, não fecha.

NOTA

7.5
★★★★★★★★★★

CONSIDERAÇÕES

Discounty seduz com uma embalagem encantadora de arte pixelada e música relaxante, mas a experiência que entrega é oca. O que deveria ser um escape aconchegante se transforma em uma simulação frustrante do próprio trabalho que busca retratar: uma rotina repetitiva, sem progresso significativo e com uma história superficial que não leva a lugar algum. No fim, é um produto que promete satisfação, mas entrega apenas o cansaço de um turno mal pago, deixando a sensação de que a conta simplesmente não fecha.

Gustavo Feltes
Gustavo Feltes
Eu amo jogar, jogar é uma parte de mim. Cada história, momento, universo e gameplay me encantam. Eu não tenho restrições de jogos, cada célula do meu corpo clama por isso.
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