Existe uma fadiga particular que se instala depois que um gênero de jogo explode. Foi assim com os MOBAs, com os battle royales e, mais recentemente, com a prole quase infinita de Vampire Survivors. De repente, o mercado se vê inundado por uma maré de clones, cada um oferecendo a mesma dose de dopamina barata: mova-se, colete gemas, veja números subindo e a tela se enchendo de efeitos. É um loop viciante, não me entenda mal, mas que com o tempo começa a parecer fast-food. Sacia a fome imediata, mas deixa um vazio, uma sensação de que você não fez nada, apenas pilotou um avatar automático em meio ao caos. Eu estava nesse ponto de exaustão quando Hordes of Hunger apareceu no meu radar, e ele não sussurrou, ele gritou uma promessa diferente.
Ele se autointitula um “3D action Survivorslike”, uma declaração de intenções que, para os cínicos, poderia soar como apenas mais uma palavra da moda. Para mim, soou como a resposta para a minha prece. A promessa não era apenas de sobreviver, mas de lutar. De ter agência. De empunhar a espada, sentir o peso do martelo, e não apenas ser um ímã de XP passivo. Hordes of Hunger me convidou para um banquete. A mesa estava posta com uma toalha de linho escuro, a iluminação era atmosférica e o cheiro que vinha da cozinha era de uma caça robusta, de algo substancial que finalmente saciaria essa fome por mais. Sentei-me, ansiosa. O problema, como eu descobriria nas horas seguintes, é que muitos dos pratos ainda estavam crus. E alguns, francamente, pareciam ter sido preparados por um chef que odeia seus clientes.
Ecos num Mundo Vazio
A primeira garfada, a ambientação, é promissora. O mundo de Hordes of Hunger é sombrio, melancólico e desesperado. Você é Mirah, uma guerreira ressuscitada por seu pai através de alguma magia proibida para enfrentar “A Fera”, uma entidade calamitosa que emergiu do mar, trazendo consigo uma praga de monstros e uma fome que consome a terra. É um esqueleto narrativo sólido, com potencial para uma tragédia gótica e pessoal. O problema é que o jogo parece satisfeito em nos dar apenas o esqueleto.
A história é contada em fragmentos tão esparsos, tão perdidos entre as longas sessões de carnificina, que é quase impossível manter o fio da meada. Você conversa com seu pai, resgata um sobrevivente, e então passa uma hora esmagando crânios antes que a próxima linha de diálogo apareça, momento no qual você já se esqueceu completamente do que estava acontecendo. O Codex no menu tenta amarrar as pontas, mas serve mais como um resumo de enciclopédia do que como uma narrativa envolvente.
Essa vacuidade se torna dolorosamente clara com os NPCs que você resgata. Salvar pessoas deveria ter um peso emocional, um propósito. Aqui, é pouco mais que uma tarefa mecânica. Uma vez que chegam ao seu acampamento, esses sobreviventes se tornam adereços silenciosos. O cozinheiro, o ferreiro, todos eles estão lá, mas não têm nada a dizer, nada a acrescentar ao mundo além de sua função de menu. E então, há o momento que encapsula perfeitamente a falha narrativa do jogo: a missão do burro. Você se esforça, luta contra uma horda, para resgatar um burro perdido. Ele te agradece, imagino, e te segue até o acampamento. E quando você vai interagir com ele, esperando talvez uma piada, um easter egg, qualquer coisa, a caixa de diálogo exibe apenas três pontos: “…”. E é isso. Uma promessa de interação que leva a um beco sem saída. Esse burro é a metáfora perfeita para a história de Hordes of Hunger: um esforço que resulta em um silêncio eloquente, um mundo lindamente construído, mas fundamentalmente oco.
A Dança Macabra da Sobrevivência
Se a história é um prato que nunca chega, o gameplay é o aperitivo que quase justifica a espera. O ciclo central de uma “run” em Hordes of Hunger é onde a magia do gênero brilha intensamente. Você começa frágil, correndo pela sua vida, desviando de um mar de garras e dentes. Aos poucos, a cada nível que você sobe, a cada escolha de habilidade, a balança começa a pender. E então, em algum momento, o ponto de inflexão acontece. Você não está mais sobrevivendo; você está dominando. Você se torna, como um jogador descreveu com precisão, um “corta-relva anti-zumbi mágico”. Esse arco de poder, de presa a predador, é executado com maestria e é inegavelmente viciante.
A estrutura das missões tenta quebrar a monotonia. Cada incursão é dividida em segmentos, com objetivos que vão além de “mate tudo”. Você precisa escoltar sobreviventes, destruir estruturas inimigas ou até mesmo jogar esconde-esconde com crianças em meio ao apocalipse. Embora a variedade seja bem-vinda, algumas dessas missões podem se tornar repetitivas e um tanto enfadonhas com o tempo.
Onde o jogo introduz uma camada estratégica interessante é no sistema de Santuário. A cada dois objetivos concluídos, o tempo congela e você tem uma escolha: continuar, arriscando tudo por recompensas maiores, ou recuar para o acampamento, garantindo os recursos que você já coletou. É um mecanismo clássico de risco e recompensa que força decisões tensas, especialmente quando você está por um fio de vida, mas com os bolsos cheios de materiais raros. É uma dança constante com a ganância e o medo, e quando funciona, é brilhante. O problema é que, muitas vezes, a música para abruptamente porque o DJ tropeçou nos cabos.
O Peso do Aço e a Leveza da Sorte
É aqui que o banquete realmente desmorona. Para cada elemento de design brilhante em Hordes of Hunger, parece haver outro que está quebrado, mal explicado ou simplesmente hostil. O jogo vive em um estado de guerra civil consigo mesmo, onde suas melhores ideias são constantemente sabotadas por suas piores execuções.
Primeiro, o que funciona: o peso do aço. O combate corpo a corpo é o grande diferencial. Ao contrário de seus pares, aqui você está no controle total. Você desfere ataques leves e pesados, executa movimentos especiais, desvia e apara golpes inimigos. Cada arma, seja a lança ágil ou o martelo esmagador, tem um peso e um ritmo distintos, adicionando uma camada de habilidade que o gênero desesperadamente precisava. Quando você está no meio da horda, desviando de um ataque no último segundo para contra-atacar com um golpe giratório que incendeia todos ao seu redor, o jogo canta.
Mas então, a sorte acaba. O primeiro e mais atroz problema é a câmera. Ela não é sua aliada; é seu inimigo mais traiçoeiro. Ela se prende em pedras, gira descontroladamente e esconde ameaças, levando a mortes baratas e frustração pura. Em um jogo de ação 3D que exige consciência espacial, ter uma câmera que ativamente trabalha contra você é um pecado capital. É como tentar apreciar a Mona Lisa enquanto alguém sacode sua cabeça violentamente.
Depois, vem o “grind macabro”, como um jogador o batizou. A progressão permanente, o que deveria te manter voltando para mais, é excruciantemente lenta. Passei horas em múltiplas “runs” para mal conseguir os materiais para uma única arma nova de raridade baixa. Os baús, que deveriam ser momentos de alegria, frequentemente me recompensavam com moedas que eu já tinha em abundância ou habilidades que eu não podia usar. O jogo não respeita seu tempo, e isso transforma o que deveria ser uma jornada de poder em um trabalho penoso.
Some a isso uma lista de bugs e decisões de design inexplicáveis. Objetivos de missão que caem através do chão, forçando um reinício e a perda de todo o progresso. Regras cruciais, como o fato de que você perde todas as suas chaves se sair de uma “run” antes do fim (mesmo sem morrer), são mal comunicadas ou contradizem o que o próprio jogo lhe diz. E há sistemas, como o de comida, que parecem projetados para irritar: você não pode trocar uma ração que não quer usar a menos que entre em combate e sofra dano para consumi-la primeiro. São esses pequenos cortes de papel, somados, que fazem a experiência sangrar até a morte.
A Melancolia em Tons de Cinza
Se há um prato neste banquete que foi preparado com perfeição, é a apresentação. Visual e audivelmente, Hordes of Hunger é um triunfo. A direção de arte é consistentemente deslumbrante em sua desolação. Os ambientes, de castelos em ruínas a florestas pálidas, são encharcados em uma atmosfera de melancolia e decadência. O jogo usa a Unreal Engine 5, e isso se reflete na qualidade das texturas, na iluminação e nos modelos de personagens grotescos que formam as hordas. É um mundo “lindamente sombrio” que consegue ser opressivo e convidativo ao mesmo tempo.
A paisagem sonora é igualmente impressionante. A trilha sonora é uma companheira constante e eficaz, alternando entre melodias sombrias e solitárias durante os momentos de calmaria e faixas tensas e percussivas quando o inferno se solta. Cada área parece ter sua própria identidade musical, um feito que demonstra um cuidado e uma atenção aos detalhes que faltam em outras áreas do jogo. A dublagem completa, embora sirva a uma história superficial, também eleva o valor da produção, dando ao jogo um verniz de qualidade que muitos títulos indie não alcançam.
No entanto, essa excelência audiovisual acaba tendo um efeito paradoxal. Ela estabelece uma expectativa de profundidade e polimento que o resto do jogo não consegue cumprir. A beleza da apresentação torna as falhas da jogabilidade e da narrativa ainda mais gritantes. É como receber uma caixa de presente lindamente embrulhada para descobrir que dentro há apenas um bilhete dizendo “presente em desenvolvimento”. A casca é tão bem-feita que o interior vazio se torna ainda mais decepcionante.
Uma Máquina de Guerra para um Campo de Batalha Instável
Vamos falar de especificações. Meu campo de batalha é um PC equipado com uma RTX 4060, um processador Ryzen 7 5700X e 32 GB de RAM. Para um jogo cujos requisitos recomendados pedem uma GTX 1660 SUPER, minha configuração não é apenas adequada; é um canhão para matar uma mosca. E, na maior parte do tempo, o jogo se comporta como tal. As taxas de quadros são altas, os cenários são fluidos e as hordas de monstros se desfazem em um espetáculo de partículas sem que a máquina sequer sue.
Contudo, este é um jogo em Acesso Antecipado, e essa etiqueta vem com uma advertência implícita: “cuidado com os escombros”. Apesar da potência do hardware, a otimização ainda é um trabalho em andamento. A experiência é marcada por uma instabilidade traiçoeira. Noventa e nove por cento do tempo, tudo corre suave como seda. Mas naquele um por cento, geralmente no pico da ação, quando centenas de inimigos estão na tela e os efeitos de partículas transformam a luta em uma queima de fogos de artifício, o jogo engasga. Uma queda súbita de quadros, um stutter momentâneo que pode ser o suficiente para te fazer errar uma esquiva crucial.
A conclusão aqui é simples: se você tem uma máquina como a minha ou superior, qualquer problema de desempenho que encontrar não é culpa do seu hardware. É o jogo mostrando as costuras de seu desenvolvimento. A potência de uma RTX 4060 pode mascarar muitas das ineficiências do código, mas não pode eliminá-las completamente. A performance, portanto, reflete o estado geral do jogo: majoritariamente funcional e impressionante, mas pontuado por falhas súbitas e frustrantes que te lembram que a obra ainda não está pronta.
A Promessa de um Prato que Nunca Chega
No final, saí da mesa de Hordes of Hunger com um sentimento agridoce. Não saí saciada, mas também não saí completamente faminta. Saí frustrada. Frustrada porque este jogo tem um coração forte, pulsante e brilhante. O combate ativo, a atmosfera imersiva e o viciante arco de poder de cada “run” são a base de algo verdadeiramente especial. É um aperitivo tão delicioso que te faz sonhar com o prato principal.
Mas esse prato principal nunca chega. O coração do jogo está preso em um corpo doente, afligido por uma câmera que te odeia, um sistema de progressão que não respeita seu tempo, uma narrativa que se contenta com o silêncio e uma miríade de pequenas falhas de design que se acumulam até formarem uma montanha de frustração. Hordes of Hunger não é um jogo ruim; é a sombra de um grande jogo. É a personificação do potencial não realizado, um lembrete melancólico do que “poderia ter sido”.
Eu não posso, em sã consciência, recomendar que você se sente a esta mesa agora. Não enquanto a cozinha estiver neste estado de desordem. Mas eu também não posso te dizer para ignorar o restaurante. O que eu recomendo é que você fique do lado de fora, de olho no menu. O jogo está em Acesso Antecipado, e há uma promessa de que mais conteúdo e polimento virão. A pergunta que fica, a que realmente importa, não é se você deve jogar Hordes of Hunger hoje. É se os desenvolvedores conseguirão, um dia, finalmente cozinhar e servir o banquete que eles tão claramente nos prometeram. E essa é uma esperança que, assim como a fome que dá nome ao jogo, pode ser eterna.
NOTA
CONSIDERAÇÕES
Hordes of Hunger possui uma base fantástica: um combate visceral e ativo que o diferencia no gênero "survivors-like" e uma atmosfera sombria impecável. No entanto, essa promessa é soterrada por uma execução falha. Uma câmera problemática, progressão excessivamente lenta, bugs frustrantes e uma narrativa superficial transformam o que poderia ser um banquete em uma experiência frustrante e inacabada. É um jogo com a alma de um clássico, mas um corpo que ainda precisa de muito polimento. Vale a pena ficar de olho durante o Acesso Antecipado, mas, por enquanto, a fome por um grande jogo do gênero não será saciada aqui.