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Review | Beyond Good & Evil – 20th Anniversary Edition (PS5)

Existe um tipo peculiar de vertigem que nos acomete ao reencontrar um amor antigo. Não um amor romântico, necessariamente, mas um daqueles afetos formativos da juventude, encapsulado no âmbar da memória. Para mim, e para uma legião silenciosa de devotos, Beyond Good & Evil é esse amor. Vê-lo ressurgir, vinte e um anos depois, nesta 20th Anniversary Edition, é como encontrar um velho retrato numa caixa de mudança. A alegria do reconhecimento é imediata, visceral. O rosto é o mesmo, os olhos ainda brilham com a mesma promessa de aventura. Mas, ao olhar mais de perto, notamos as marcas do tempo, não apenas na fotografia, mas em nós mesmos.

Este jogo sempre foi um paradoxo. Uma obra-prima aclamada pela crítica, um clássico cultuado sussurrado em fóruns e conversas de corredor, que, no entanto, foi um retumbante fracasso comercial em seu lançamento original em 2003. Era uma pérola rara, destinada a poucos. Agora, a Ubisoft, em um ato que parece tanto uma celebração quanto uma escavação arqueológica, nos entrega não uma reinvenção, mas uma restauração. É crucial entender isso: isto é um remaster, um trabalho de artesão que limpa a pátina do tempo para que o brilho original possa ser visto em telas de 4K, não uma reescritura que arriscaria apagar a alma do original.

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Confesso que abri o jogo no meu PlayStation 5 com um misto de euforia e pavor. A memória é de uma editora talentosa, que apara arestas e suaviza texturas. Será que a aventura de Jade, a fotojornalista de olhos verdes e coração rebelde, resistiria ao escrutínio impiedoso de duas décadas de evolução no design de jogos? Ou eu estaria prestes a descobrir que meu retrato amado era, na verdade, uma pintura desbotada? Esta edição comemorativa, por si só, já é um artefato fascinante. Em uma era em que a Ubisoft se tornou sinônimo de mundos abertos colossais, repletos de ícones e listas de tarefas, o relançamento deste jogo, uma aventura contida, linear, com uma visão de autor fortíssima, é quase um ato de contrição. É um lembrete de que, antes da fórmula, havia a experimentação. É um aceno para nós, os que lembram. A questão é: o que, exatamente, estamos sendo convidados a lembrar?

Ecos na Propaganda

A narrativa de Beyond Good & Evil sempre foi seu músculo mais forte, e o tempo, em vez de atrofiá-lo, o fortaleceu de maneiras assustadoras. Voltamos ao planeta Hillys, um mundo aquático com uma estética rústica europeia, habitado por humanos e animais antropomórficos cativantes. É um cenário de conto de fadas sitiado. Uma raça alienígena, os DomZ, ataca incessantemente, abduzindo a população. Em resposta, uma ditadura militar chamada Seção Alpha assume o poder, prometendo proteção. A verdade, no entanto, é uma ferida purulenta sob a bandagem da propaganda oficial.

Nossa heroína, Jade, não é uma guerreira escolhida ou uma princesa. Ela é uma fotógrafa freelancer que cuida de um orfanato com seu tio, um porco mecânico chamado Pey’j. Recrutada por uma rede de resistência clandestina, a Rede IRIS, sua missão não é destruir um império com a força, mas expô-lo com a verdade. A Seção Alpha, os supostos protetores, está em conluio com os DomZ, traficando seu próprio povo em troca de poder. A arma de Jade não é uma espada mágica, mas uma câmera.

Revisitar essa trama em 2025 é uma experiência desconcertante. O que em 2003 parecia uma charmosa ficção científica sobre conspirações governamentais, hoje soa como um noticiário. O jogo é uma alegoria poderosa sobre a guerra de narrativas, sobre a fabricação do consentimento através da mídia e sobre a coragem necessária para buscar a verdade em um mundo saturado de mentiras oficiais. Jade se destaca, ainda hoje, como um farol de design de personagem: competente, empática, movida por lealdade e justiça, e completamente desprovida da sexualização que definia as protagonistas femininas de sua era. Ela e seus companheiros, o paternal e teimoso Pey’j e o heroico e um tanto ingênuo Double H, formam um dos trios mais carismáticos da história dos videogames.

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O título do jogo, uma referência direta à obra de Friedrich Nietzsche, nunca foi tão apropriado. A filosofia de Nietzsche nos convida a questionar as moralidades impostas, a olhar “para além do bem e do mal” para entender que tais conceitos são, muitas vezes, ferramentas de poder. A Seção Alpha cria uma moralidade binária simples para os cidadãos de Hillys: “nós somos o ‘bem’ protetor, os DomZ são o ‘mal’ invasor”. A jornada de Jade é um exercício prático dessa filosofia. Sua câmera é a ferramenta para desconstruir essa mentira confortável, revelando que o bem e o mal estão emaranhados em uma dança cínica e simbiótica. Cada clique do obturador não é apenas um ato mecânico; é um ato de rebelião epistemológica. Em um mundo onde a verdade é maleável, uma fotografia torna-se a mais radical das armas.

A Dança de Muitos Ritmos

Se a história é o coração de Beyond Good & Evil, seu gameplay é a sua personalidade excêntrica e multifacetada. O jogo é um híbrido delicioso, uma quimera de gêneros que, no papel, não deveria funcionar, mas que na prática, cria uma sinfonia única. Há a exploração e as “dungeons” que lembram um The Legend of Zelda tridimensional; a mecânica de fotografia que evoca Pokémon Snap; seções de furtividade que piscam para Metal Gear Solid; e corridas e combates com um hovercraft que adicionam uma camada de ação arcade.

A estrutura do mundo é o que hoje chamaríamos de “semi-aberta” ou “mundo interconectado”. Hillys não é um mapa vasto para ser preenchido com ícones, mas uma série de áreas compactas e cheias de personalidade, que se abrem à medida que você progride. A principal moeda de troca para essa progressão são as Pérolas, coletadas ao completar missões, fotografar toda a fauna local ou vencer desafios. Elas são usadas para comprar melhorias para o seu hovercraft, que, por sua vez, permitem que você alcance novas ilhas e masmorras. É um ciclo de gameplay elegante e direto.

Jogá-lo hoje é um sopro de ar fresco. Em um cenário dominado por jogos que exigem centenas de horas e se orgulham de seu “conteúdo” interminável, a concisão de Beyond Good & Evil é uma virtude. A campanha principal pode ser concluída em cerca de 10 a 15 horas, um ritmo que garante que a história nunca perca o fôlego e que nenhuma de suas mecânicas se desgaste pelo excesso. Essa filosofia de design, um “mestre de nada, mas bom em tudo”, é ao mesmo tempo seu maior charme e sua fragilidade mais evidente. O jogo não busca a perfeição em nenhum de seus sistemas individuais. Ele não quer ser o melhor jogo de furtividade, nem o melhor jogo de combate. Ele quer ser a melhor experiência de ser Jade. Cada mecânica, por mais simples que seja, serve à fantasia central de ser uma repórter investigativa, uma cuidadora e uma rebelde. O resultado é um todo coeso e memorável, uma experiência em que a soma é infinitamente maior que suas partes individuais.

Ferramentas Gastas pelo Uso

É aqui, no toque, no controle, que o retrato começa a mostrar sua idade. A interação momento a momento com o mundo de Hillys é uma negociação constante entre a fluidez do design original e a rigidez imposta pelo tempo. Algumas ferramentas da caixa de Jade ainda parecem novas em folha; outras estão enferrujadas e gastas.

O combate é o exemplo mais claro. É um sistema simples, baseado em um único botão de ataque que desfere combos com o bastão Dai-jo de Jade, complementado por um ataque carregado e um projétil à distância. Na época, era funcional e até satisfatório em seu ritmo. Hoje, parece rígido, quase robótico. Falta-lhe o peso, a responsividade e a profundidade que se tornaram padrão. Ele funciona, mas nunca empolga.

A furtividade, infelizmente, envelheceu ainda pior. É o pilar mais frágil da experiência. As seções de stealth são, em sua maioria, rudimentares, um jogo de esconde-esconde com os cones de visão dos guardas. O problema é quando o design se torna punitivo. Muitas áreas apresentam torres ou inimigos que resultam em morte instantânea ao ser detectado. Isso transforma o que deveria ser um desafio de tensão e inteligência em um exercício frustrante de tentativa e erro, forçando o jogador a recarregar o save repetidamente. É uma filosofia de design arcaica, que valoriza a punição em vez de dar ao jogador ferramentas para improvisar e se recuperar. É a única parte do jogo que me fez suspirar de cansaço.

Em contrapartida, a mecânica de fotografia permanece absolutamente genial. É atemporal. Há um prazer simples e profundo em enquadrar o mundo através da lente de Jade. Seja catalogando a fauna bizarra de Hillys para ganhar créditos ou capturando aquela foto incriminadora que vai abalar o regime, o ato de fotografar é consistentemente recompensador. É a mecânica que melhor casa gameplay e narrativa, e continua sendo o elemento mais único e brilhante do jogo.

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Por fim, a câmera. Ah, a câmera. Ela é a verdadeira antagonista em muitos momentos. Fiel à sua era, ela frequentemente se posiciona perto demais de Jade, fica presa na geometria do cenário e parece ter vontade própria nos piores momentos possíveis, transformando uma seção de plataforma simples ou um combate tenso em uma briga contra a própria interface. Embora os controles tenham sido remapeados para padrões modernos, a lógica fundamental da câmera permanece um fantasma teimoso da era do PlayStation 2.

A Partitura Reorquestrada

Se as mecânicas são onde a idade do jogo se manifesta, a apresentação audiovisual é onde esta edição de aniversário brilha com a força de uma supernova. Este é, sem dúvida, um dos remasters mais cuidadosos e respeitosos que já joguei. A Ubisoft não se contentou em apenas aumentar a resolução. O trabalho feito aqui é profundo e transformador.

Visualmente, o jogo é deslumbrante. Quase todas as texturas foram refeitas, trocando os borrões do original por superfícies nítidas e detalhadas. Os tecidos nas roupas dos personagens agora têm uma textura crível; os metais refletem a luz de forma realista; e a iluminação foi completamente refeita, adicionando profundidade e atmosfera a cada cena. São os pequenos detalhes que mais impressionam: os personagens secundários, que antes tinham mãos que pareciam garras de Lego, agora possuem dedos individuais. É uma filosofia de “aprimoramento, não substituição”. A direção de arte original, com seu estilo único e carismático, não foi apagada, mas sim elevada. O resultado é um jogo que parece exatamente como você lembra que ele era, não como ele realmente era.

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A paisagem sonora recebeu o mesmo tratamento reverente. A trilha sonora icônica de Christophe Héral, uma mistura eclética de influências que vão do búlgaro ao árabe, sempre foi um dos destaques. Nesta edição, mais de 15 de suas faixas foram regravadas com uma orquestra ao vivo, sob a supervisão do próprio compositor. O resultado é magnífico, adicionando uma camada de riqueza e emoção que torna a música ainda mais impactante. A única dissonância é que a qualidade das dublagens originais, por vezes comprimida, pode soar um pouco abafada em comparação com a clareza da nova música, mas é um detalhe menor em uma apresentação de áudio primorosa.

Além disso, o pacote vem recheado de extras. A “Galeria de Aniversário” é um presente para os fãs, um mergulho profundo no desenvolvimento do jogo, com artes conceituais, vídeos de protótipos e até conteúdo cortado. Há também uma nova missão, uma “caça ao tesouro” que não só adiciona mais uma hora de gameplay, mas também expande a história de Jade e, crucialmente, cria uma ponte direta com a mitologia da eternamente aguardada sequência, Beyond Good & Evil 2.

A Ferida no Espelho

E então, chegamos à grande, frustrante e quase inacreditável falha deste pacote. No meio de tanto esmero, de tanto cuidado na restauração de uma obra de arte, há uma ferida feia e inexplicável bem no centro do espelho: o desempenho no PlayStation 5.

O jogo oferece dois modos gráficos: um Modo Resolução, que roda a 4K nativo, e um Modo Desempenho, em 1440p. Ambos almejam 60 quadros por segundo. E, na maior parte do tempo, eles conseguem. O jogo é fluido, responsivo. O problema é que, no Modo Resolução, essa fluidez é uma promessa quebrada. Sem aviso, o desempenho despenca de 60 para exatos 30 quadros por segundo. Não é uma queda gradual, é um solavanco, uma travada abrupta que quebra completamente a imersão. Isso acontece com frequência quando há muitos efeitos de partículas na tela, uma explosão, o uso das botas a jato de Pey’j, um zoom durante o combate.

Além do Bem e do Mal

Então, qual é o veredito sobre este retrato redescoberto? Beyond Good & Evil – 20th Anniversary Edition é, sem a menor sombra de dúvida, a forma definitiva de experienciar este clássico. É um pacote generoso, feito com um amor e um respeito evidentes pela obra original, e oferecido a um preço mais do que justo. É um jogo que eu recomendaria de olhos fechados tanto para os veteranos nostálgicos quanto para os novatos curiosos.

Mas essa recomendação vem com um asterisco do tamanho de Hillys. É preciso chegar a ele com a consciência de que você está interagindo com uma peça de outra era. É preciso ter paciência com suas mecânicas envelhecidas e, principalmente, com seu desempenho técnico inconstante. A nova missão, que acena para a sequência, é um presente agridoce, um lembrete de um futuro prometido há tanto tempo que já se tornou quase mítico, fazendo deste remaster algo que parece tanto uma celebração quanto um possível epitáfio.

No fim, a experiência de jogar Beyond Good & Evil em 2025 é, apropriadamente, um exercício de ir “além do bem e do mal” no sentido crítico. Não se trata de aplicar um selo binário de “bom” ou “ruim”. É sobre reconhecer e abraçar a complexidade. Este é um jogo lindo, brilhante, desajeitado, frustrante e absolutamente essencial. É uma obra-prima com falhas. E este remaster, com sua restauração primorosa e seus tropeços técnicos exasperantes, é o receptáculo perfeito e igualmente falho para carregar seu legado complicado para o futuro. Ele não pede apenas que você jogue. Ele pede que você pense, que você sinta e, acima de tudo, que você perdoe. E no mundo barulhento e efêmero de hoje, talvez essa seja a coisa mais valiosa que um jogo pode nos pedir.

NOTA

8.5
★★★★★★★★★★

CONSIDERAÇÕES

Beyond Good & Evil - 20th Anniversary Edition é a versão definitiva de um clássico amado, trazendo uma restauração visual e sonora primorosa que honra o original. A história sobre verdade e conspiração continua cativante e relevante. No entanto, a experiência é prejudicada por mecânicas datadas, especialmente no combate e na furtividade, e por problemas de desempenho no PS5 que causam quedas de frames. Ainda assim, é um pacote indispensável para fãs e a melhor porta de entrada para novatos, contanto que venham preparados para as marcas da idade e as falhas técnicas.

Gustavo Feltes
Gustavo Feltes
Eu amo jogar, jogar é uma parte de mim. Cada história, momento, universo e gameplay me encantam. Eu não tenho restrições de jogos, cada célula do meu corpo clama por isso.
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