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Review | V Rising (PC)

A Sombra e a Burocracia

Eu acordo com fome. Não é uma fome poética, daquelas que lemos em romances góticos. É uma fome primitiva, suja. Eu não acordo em um caixão de veludo forrado com a terra ancestral da Transilvânia; eu acordo em uma cripta úmida, um saco de ossos animado por pura necessidade. A fantasia de ser um lorde vampiro, um Lestat arrogante e sedutor, morre nos primeiros trinta segundos, no momento exato em que eu, literalmente, arranco um fêmur de um esqueleto próximo para usá-lo como uma clava improvisada.

Essa é a primeira e mais honesta declaração que V Rising faz. Este jogo, saído de um longo e bem-sucedido Acesso Antecipado para sua versão 1.0, não é bem o “jogo de vampiro” que você espera. É um híbrido complexo, uma quimera de design que tenta resolver os problemas de dois gêneros que, francamente, já me cansaram.

De um lado, ele pega o gênero de sobrevivência, pense em Valheim ou Conan Exiles, e arranca seu combate travado e desengonçado, substituindo-o pela precisão tática e viciante de um ARPG, algo saído de Diablo ou Path of Exile. Do outro, ele pega a fórmula do ARPG, com seus mundos descartáveis e progressão baseada em loot, e a força a ter consequências, a ter permanência.

V Rising

V Rising é construído sobre uma dissonância fundamental: a fantasia de ser um predador imortal e todo-poderoso contra a realidade mecânica de ser um gerente de nível médio. Este não é um jogo sobre a glória da imortalidade; é sobre o trabalho exaustivo que ela exige. É sobre a burocracia do poder.

Ecos no Caixão Vazio

Vamos tirar logo isso do caminho: se você procura uma campanha cinematográfica, uma narrativa densa com personagens complexos e reviravoltas dignas de um Baldur’s Gate, você está no caixão errado. V Rising não tem, estritamente falando, uma “história”.

O que ele tem é um motor de progressão disfarçado de narrativa. Você acorda, constrói um “Altar de Sangue” e este altar, que funciona como um aplicativo de delivery de alvos, lhe dá uma lista de “Sangues-V”, chefes que você deve caçar. Você os mata, absorve o poder deles, desbloqueia novas receitas de crafting e, então, o altar atualiza a lista. É funcional, é viciante, mas é profundamente sem alma. É, em essência, uma lista glorificada de afazeres.

A verdadeira história, no entanto, é contada pelo mundo. E aqui, o jogo brilha. Vardoran não é uma terra de fantasia genérica; é um cenário pós-apocalíptico. A grande sacada é: os humanos venceram. A guerra acabou há séculos, e nós, os vampiros, perdemos.

As Fazendas Dunley, a segunda região do jogo, não são apenas campos idílicos para coletar algodão; as descrições nos dizem que aquele lugar era a “antiga coroa do império de Drácula”, agora reduzida a moinhos de vento e plantações de alho. Nós não somos os conquistadores; somos os restos esquecidos de uma praga que o mundo acredita ter curado.

V Rising

E a grande novidade da versão 1.0, o endgame na região de Mortium, é a chegada do próprio Drácula. Mas a ironia que o jogo faz um péssimo trabalho em explicar, e que você só descobre lendo as entrelinhas dos diários, é que Drácula não é nosso líder. Ele é o outro vilão.

Nós, os vampiros jogadores, éramos de clãs que recusaram a tirania centralizadora de Drácula. Em sua arrogância, ele iniciou uma guerra que quase destruiu o mundo. A humanidade, em pânico, apelou para a “Luz” e recebeu poder suficiente para exterminar todos os vampiros, incluindo nós, que não tínhamos nada a ver com isso.

O jogo, portanto, nos posiciona como uma espécie de “mal neutro”. Estamos em uma guerra de três vias: A Legião de Noctum de Drácula, que quer seu rei de volta; a Igreja da Luminância, que quer exterminar qualquer coisa com presas; e nós, que só queremos construir nosso castelo em paz e talvez escravizar alguns humanos. É uma complexidade narrativa fascinante, escondida sob camadas de grind.

A Dança da Lâmina e da Sombra

O motor que move V Rising é a caçada. O Altar de Sangue permite que você “sinta” o cheiro de um chefe específico, e uma trilha de sangue etérea guia você pelo mapa. Este sistema é, simultaneamente, o maior gênio e a maior muleta do jogo.

É genial porque resolve o problema fundamental de 99% dos jogos de sobrevivência: a ansiedade do “e agora?”. Em Valheim, você mata um chefe e fica meia hora olhando para o nada, sem saber qual é o próximo passo. Em V Rising, a resposta é imediata: “Cace o próximo chefe”. Isso dá um foco implacável à progressão.

Mas é uma muleta porque torna um jogo de mundo aberto surpreendentemente linear. Você precisa matar o Quebrador de Pedras Errol para conseguir a receita da bigorna, que permite fazer ferramentas de cobre, que permitem minerar o ferro necessário para matar o próximo chefe. É uma progressão em linha reta, disfarçada de exploração.

Onde o jogo se redime é no combate. A Stunlock Studios, desenvolvedora, fez sua fama com o MOBA Battlerite, e essa herança é óbvia. O combate é top-down, preciso, e parece um balé mortal de skill-shots (disparos de habilidade). Você não fica parado trocando golpes como um troglodita. Você desvia de projéteis, usa contra-ataques no tempo certo e posiciona suas magias de área.

V Rising

Cada tipo de arma, espadas, machados, lanças, maças, ceifadeiras, tem um conjunto único de ataques e técnicas. Uma maça pode quebrar a defesa de um inimigo; uma lança o atordoa à distância. É tático, rápido e faz o combate da maioria dos jogos de sobrevivência parecer, em comparação, uma briga de travesseiros.

Agora, um aviso pessoal: eu joguei a maior parte do tempo sozinho. E V Rising é uma experiência solo funcional, mas vazia. O jogo permite que você jogue sozinho, mas ele não o apoia. O grind para construir um castelo, mesmo com as melhorias da versão 1.0, é claramente pensado para um clã de três pessoas. Os chefes, com suas saraivadas de ataques em área que cobrem a tela inteira, parecem balanceados para múltiplos jogadores, um para segurar a atenção, outro para causar dano.

E, o mais importante, há um vazio existencial em jogar V Rising sozinho. Qual é, honestamente, a graça de passar quarenta horas projetando e construindo um castelo gótico de seis andares, com bibliotecas, forjas e criptas, se não há absolutamente ninguém para exibi-lo? É como preparar um banquete meticuloso e comer sozinho na cozinha.

O Sol é o Verdadeiro Vilão

Se Drácula é o chefe final, o Sol é o verdadeiro antagonista. Esta é, sem sombra de dúvida, a melhor mecânica do jogo.

Ser pego no sol não lhe dá um debuff inconveniente. Ele tenta te matar. Um feixe de luz celestial incinera você em segundos. O jogo inteiro é ditado por esta fraqueza. O nascer do sol não é uma bela vista; é um toque de recolher. Eu senti pânico real ao ouvir o primeiro canto dos galos, correndo desesperadamente para a sombra de uma árvore, rezando por uma nuvem passageira.

O sol funciona como o metrônomo que dita todo o ritmo do jogo. O Dia é quando você é um administrador: você fica dentro do seu castelo, opera as máquinas de crafting, organiza seus baús, planeja sua próxima jogada. A Noite é quando você é um predador: você sai para caçar, explorar e matar. Esse ciclo de “Administrador Diurno / Predador Noturno” é infinitamente mais interessante do que qualquer barra de fome ou sede.

O segundo sistema genial é o Sangue. Você não apenas “bebe sangue” para sobreviver. Você absorve o tipo e a qualidade desse sangue. Beber de um Guerreiro lhe dá mais dano físico e resistência; beber de um Erudito reduz a recarga de suas magias; beber de um Ladino aumenta sua velocidade e chance de crítico.

qualidade desse sangue, medida de 1% a 100%, determina o quão fortes são esses bônus. Este é o verdadeiro sistema de loot aleatório do jogo. Você não caça uma espada lendária; você caça um humano com “Sangue de Erudito 100%”. E o melhor: é temporário. Você perde esse bônus se morrer ou se alimentar de outra criatura. Isso cria uma dinâmica deliciosa de risco e recompensa.

Por fim, a construção do castelo. É robusta, complexa e essencial. Você deve construir salas temáticas, uma biblioteca com piso de biblioteca, uma forja com piso de forja, para ganhar bônus de eficiência.

V Rising

Mas aqui encontramos a burocracia novamente. Para manter seu castelo funcionando, você precisa alimentar o “Coração do Castelo” com Essência de Sangue, um item que você coleta. Se a essência acabar, seu castelo “apodrece” e desmorona. Este é um fantasma irritante dos dias de Acesso Antecipado, quando o jogo era focado em PvP (jogador contra jogador), e isso servia para que jogadores inativos perdessem suas bases. No modo solo, isso não serve a propósito algum, exceto ser um imposto. É a tarefa que quebra a fantasia.

Sinfonia para a Noite

O estilo de arte de V Rising é marcante. Mas não é apenas “bonito”; ele é, acima de tudo, funcional.

A direção de arte é gótica, sombria e atmosférica. Mas os desenvolvedores tomaram uma decisão deliberada, vinda de sua experiência em MOBAs: os personagens são estilizados, quase cartunescos, enquanto os ambientes são mais realistas e detalhados. O motivo é simples: legibilidade.

O mundo de Vardoran é escuro, cheio de sombras e efeitos climáticos. Mas o combate precisa ser claro. Você precisa ver, instantaneamente, aquele círculo vermelho no chão que indica um ataque inimigo. A arte, portanto, não serve apenas à atmosfera; ela serve, em primeiro lugar, ao gameplay. É uma escolha pragmática e inteligente.

A trilha sonora é excelente, orquestrada e adequadamente melancólica. Mas é o design de som que se destaca, pois ele reforça o metrônomo do sol.

V Rising

Durante o dia, trancado no meu castelo, o jogo se torna um ASMR de crafting. O som rítmico do triturador de ossos, o thunk do tear, o silvo da forja. É hipnótico, o som da produção. À noite, o mundo se abre. O silêncio da Floresta Amaldiçoada é quebrado pelo uivo de um lobo, e então pelo impacto visceral, quase úmido, de um feitiço de sangue atingindo um inimigo. É o som da caça.

Sangue Frio, Máquina Quente

Eu joguei V Rising 1.0 na configuração: um Ryzen 7 5700x, uma RTX 4060 e 32 GB de RAM. E devo dizer, após um Acesso Antecipado que tinha seus engasgos, a versão final é um pequeno milagre de otimização.

O Preço da Imortalidade

V Rising é uma jornada da sarjeta ao trono. Você começa como um rato faminto, escondendo-se do sol, e termina como um monarca sombrio, com um castelo de seis andares e servos humanos presos em celas, prontos para serem ordenhados como gado. Você literalmente mata o Conde Drácula e toma seu lugar.

O jogo é uma obra-prima de design de sistemas. A forma como ele funde a progressão do ARPG com a construção do survival é viciante em um nível quase perigoso.

V Rising

Mas o que torna V Rising verdadeiramente inesquecível, e o que o faz acertar na fantasia vampírica de uma forma que tantos outros erraram, não é o poder que ele lhe dá. É a responsabilidade que ele exige.

A imortalidade, aqui, não é uma bênção. É uma profissão. É um trabalho ingrato, em tempo integral. Você tem que gerenciar sua dieta, seus funcionários (os servos do caixão), seu estoque de materiais, a manutenção do seu castelo e, acima de tudo, seu cronograma diário para evitar o sol. É uma burocracia eterna.

V Rising é, sem sombra de dúvida, o maior simulador de gerente gótico já feito. E, por alguma razão doentia e maravilhosa, nós adoramos o trabalho.

NOTA

9.0
★★★★★★★★★★

CONSIDERAÇÕES

V Rising é uma fusão quase perfeita de sistemas, um dos loops de sobrevivência e combate mais viciantes e inteligentes já feitos. Ele acerta em cheio ao entender a fantasia vampírica não como poder gratuito, mas como um trabalho exaustivo de gerenciamento. Ele não quer ser seu passatempo; ele quer ser seu segundo emprego. Um emprego que, por alguma razão doentia e maravilhosa, você vai adorar.

Gustavo Feltes
Gustavo Feltes
Eu amo jogar, jogar é uma parte de mim. Cada história, momento, universo e gameplay me encantam. Eu não tenho restrições de jogos, cada célula do meu corpo clama por isso.
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