Vamos ser honestos: o horror, como gênero, raramente se reinventa. Ele se repete, se exaure e, na maior parte do tempo, nos contentamos com sustos telegrafados e monstros que parecem refugiados de um catálogo de efeitos especiais dos anos 90. Estamos saturados de perseguições em corredores escuros e do barulho de violinos estridentes. O que ainda nos assusta, de verdade, não é o monstro no armário. É o silêncio do outro lado da porta. É a ansiedade paralisante de estar sozinho no meio da multidão, ou pior, de estar tão fundamentalmente isolado que a multidão nem sequer sabe que você existe.
É nesse pântano de ansiedade social que BrokenLore: DON’T WATCH finca sua bandeira.
Este não é um jogo de terror no sentido tradicional. É um simulador de desconforto. Lançado pela Serafini Productions, ele nos joga na pele e, mais importante, no crânio de Shinji, um hikikomori japonês. Shinji não sai do seu minúsculo apartamento em Tóquio. Ele não paga o aluguel, não atende o telefone e sua única interação com o universo é a luz azulada do monitor do seu PC, uma janela blindada para um mundo que ele renunciou.

O título, DON’T WATCH, é a primeira provocação. É uma ordem que nasce para ser desobedecida. O jogo sabe que vamos assistir. E ele nos prepara para o fato de que algo também está nos observando de volta. A premissa é simples: o horror não é uma invasão; é uma erosão. É o que acontece quando as quatro paredes do seu refúgio se tornam, milímetro por milímetro, as paredes da sua cela. E nós, jogadores, somos os voyeurs cúmplices dessa decadência.
As Quatro Paredes do Purgatório
A narrativa de DON’T WATCH não é entregue; ela é absorvida pela pele. Não há longas cutscenes ou diários expositivos explicando o “lore”. A história de Shinji é contada pelo lixo.
O design de ambiente é o roteirista principal. O jogo “não explica; ele mostra. Ele faz você viver”. E o que ele nos mostra é desolador. O chão do apartamento de Shinji está literalmente coberto por uma camada geológica de embalagens de comida vazias, caixas de pizza e sacos de lixo que transbordam há semanas. Isso não é um asset de cenário; é a biografia do protagonista. É a representação visual da apatia, da depressão e da total desconexão social.
O conflito é sufocantemente mundano antes de se tornar sobrenatural. São as contas se acumulando, a ansiedade esmagadora de interagir com um entregador de pizza, as ligações perdidas de uma família que claramente não entende ou não quer entender a profundidade do colapso de Shinji. O monstro real, como o jogo faz questão de sublinhar, não é o que bate à porta; é o que já vive dentro das paredes.

É aqui que o jogo toma sua decisão narrativa mais brilhante. Muitos podem criticar DON’T WATCH por sua linearidade absoluta. Você não tem escolhas. Você não tem agência. E essa é, na minha opinião, a maior força da história. Um jogo sobre a impotência paralisante da ansiedade e da depressão não deve lhe dar agência. Estamos presos na rotina sufocante de Shinji, e o jogo não nos dá a dignidade de uma escolha. Ele não quer que a gente “escape”; ele quer que a gente “entenda”.
Quando a entidade sobrenatural, Hyakume, finalmente aparece, ela não parece um invasor. Parece uma consequência. É a ansiedade de Shinji ganhando forma física, um horror que nasceu da própria estagnação. Os múltiplos finais do jogo não são sobre salvar o mundo. São sobre a decisão hercúlea e banal de enfrentar, ou não, os próprios medos.
O Ofício de Não Fazer Nada
Vamos tirar logo isso do caminho: 90% de BrokenLore: DON’T WATCH é o que a indústria, com certo desdém, chama de “walking simulator”. E eu não tenho nenhum problema com isso. A jogabilidade é deliberadamente minimalista, focada na interação ambiental, na exploração e na emoção, não em quebra-cabeças complexos ou combate. O ritmo é lento. Opressivo. Para alguns, será insuportavelmente repetitivo. Para mim, foi hipnótico.
Você anda pelo apartamento. Você olha o computador. Você recebe uma notificação. Você vai até a porta. Você olha pelo olho mágico. A tensão é construída nesse ciclo de monotonia, onde qualquer pequena quebra um objeto fora do lugar, um som no corredor parece um cataclismo.
E tudo isso funciona… até o jogo sofrer uma crise de confiança.

A atmosfera claustrofóbica do apartamento é magistral. É um feito de design de tensão. Mas, em certo ponto, o jogo parece ter entrado em pânico, com medo de ser “só isso”. E é aí que ele desmorona. DON’T WATCH nos força a sair do apartamento fotorealista e nos joga no que só pode ser descrito como um pesadelo low-poly saído de um PlayStation 1.
O jogo “perde o foco e o momentum” de forma catastrófica. O horror psicológico é trocado por uma fetch quest mundana: encontre e desligue seis cabos de TV espalhados por um labirinto pixelado, enquanto é perseguido por um monstro genérico.
Eu não consigo enfatizar o suficiente o quão desastrosa é essa seção. Ela quebra a imersão, trai a premissa e substitui o pavor existencial pelo aborrecimento de uma mecânica de stealth malfeita. É o exato momento em que DON’T WATCH deixa de confiar em sua própria atmosfera e tenta, desesperadamente, ser um “jogo” como todos os outros. É um ato de insegurança artística que quase destrói a obra-prima que ele estava construindo.
Se Você Olhar, Ele Vence
Felizmente, o desastre da “fase do PlayStation” é uma interrupção, não a regra. O verdadeiro coração do jogo reside em sua única e brilhante mecânica de sobrevivência.
Esta seção é sobre a “DON’T WATCH Mechanic”.
A entidade que assombra Shinji, Hyakume, é um yokai (um espírito do folclore japonês) definido por seus cem olhos. Ele está, literalmente, sempre observando. E a regra para o jogador é devastadoramente simples: evite o contato visual direto. Se você olhar para a criatura, você morre.
Isso é genial.

É uma mecânica que é, antes de tudo, temática. Pense nisso: décadas de jogos de terror nos treinaram a encarar a ameaça. Você aponta a lanterna. Você foca a câmera. Você olha para o monstro para sobreviver. DON’T WATCH subverte isso. Ele nos força a uma postura de submissão. Para sobreviver, você precisa desviar o olhar, baixar a cabeça, fingir que não está ali.
Essa não é uma mecânica de gameplay; é a representação física da ansiedade social. O Hyakume é a metáfora do olhar julgador da sociedade. Para sobreviver, o jogador é forçado a performar a ansiedade de Shinji. O jogo não nos diz que Shinji tem medo de ser visto; ele nos coloca nesse estado de vulnerabilidade abjeta.
É um “ritual cheio de tensão” onde a sua principal ferramenta de interação com o mundo a sua visão se torna a sua maior fraqueza. Você ouve a respiração da criatura atrás de você e sua única defesa é olhar para o chão e rezar para que ela vá embora. Isso, meus amigos, é terror de verdade.
A Poética da Sujeira Digital
Visualmente, o jogo é uma contradição fascinante. A direção de arte opera em duas camadas que se complementam perfeitamente. A primeira camada é o apartamento em si: um ambiente fotorealista, com uma atenção obsessiva aos detalhes da sujeira. A iluminação é deslumbrante em sua capacidade de capturar a poeira e a gordura acumulada.
A segunda camada é como vemos tudo isso. O jogo adota uma estética “found footage” agressiva. Não estamos vendo o mundo pelos olhos de Shinji; estamos vendo tudo através de uma “lente lo-fi”, como se fosse uma gravação de segurança ou uma fita VHS antiga.
O resultado é uma “sujeira digital” constante. A imagem é granulada, as cores sangram, a tela pisca e se distorce. Alguns podem olhar para isso e ver “texturas datadas” ou gráficos ruins. Eu vejo uma escolha artística deliberada. A estética lo-fi cria uma camada de mediação que nos torna fundamentalmente não confiáveis sobre o que estamos vendo. Aquela sombra no canto é real, ou é só um glitch da fita? A “sujeira digital” do filtro VHS espelha a sujeira física do apartamento de Shinji. É brilhante.
Mas o verdadeiro protagonista do horror aqui é o áudio. O design de som é desenhado para criar uma “sensação constante de paranoia”. O jogo entende que o silêncio é mais assustador que o barulho. Ele usa sons binaurais, sussurros que parecem vir de dentro do seu fone de ouvido, o estalar do plástico do apartamento e vozes distorcidas que nos mantêm em um estado perpétuo de tensão.
Quando a Arte Pesa na Máquina
E agora, vamos ao crime.
Eu joguei BrokenLore: DON’T WATCH na configuração que me foi fornecida: um Ryzen 7 5700x, uma RTX 4060 e 32 GB de RAM. É uma máquina mais do que competente. É um PC moderno, robusto, capaz de rodar os maiores lançamentos AAA sem suar.
A performance deste jogo nessa máquina é, para ser educado, uma vergonha.

DON’T WATCH é um jogo indie que tem a reputação de ser assustadoramente mal otimizado, e eu confirmo cada relato. Há quem reporte que placas muito superiores à minha, como uma RTX 3080, sofrem para manter 30 quadros por segundo.
Na minha RTX 4060, a experiência foi uma luta técnica. Para manter uma taxa de quadros estável, fui forçado a mexer em configurações que nem deveriam ser um problema. O jogo sofre de stutters (engasgos) que são fatais para um jogo de terror. O horror depende de imersão, e a imersão é a primeira vítima de uma queda de framerate.
A Porta Fechada
No fim, BrokenLore: DON’T WATCH é exatamente o que um colega crítico chamou de “pérola envenenada”. É uma experiência de terror perturbadora, cuidadosamente elaborada e psicologicamente ressonante, que quase desmorona sob o peso de suas falhas técnicas indesculpáveis e uma crise de confiança em seu próprio gameplay.
É um jogo que eu admirei profundamente e, por vezes, odiei jogar.
Mas, apesar de seus defeitos, ele gruda em você. É um jogo que “fica na sua cabeça”. Ele é absolutamente imperdível para quem, como eu, valoriza jogos que “olham dentro de você”, mesmo quando você tenta desviar o olhar.
O verdadeiro horror de DON’T WATCH não é o monstro de cem olhos que te caça em corredores pixelados. O verdadeiro horror é a verdade que ele representa: a de que a realidade, muitas vezes, é mais assustadora do que qualquer criatura imaginária.
O jogo te tranca em um apartamento imundo para forçá-lo a confrontar a paralisia da ansiedade. O “Final Bom”, de forma comovente, não é sobre derrotar um monstro. É sobre Shinji, finalmente, conseguir abrir a porta da frente e sair.
DON’T WATCH é um espelho. E seu legado, para mim, será sempre a percepção desconfortável de que o chefe final mais aterrorizante que qualquer um de nós jamais enfrentará é, e sempre será, a soleira da nossa própria porta.
NOTA
CONSIDERAÇÕES
BrokenLore: DON'T WATCH é uma experiência de terror psicologicamente brilhante e artisticamente corajosa, que acerta em cheio na criação de uma atmosfera sufocante e no uso de sua mecânica de "não olhar". É um jogo que fica na sua cabeça. Contudo, essa obra-prima é sabotada por si mesma, sofrendo de uma otimização técnica desastrosa e uma crise de identidade em seu gameplay que quebra totalmente a imersão. É um jogo que eu amei admirar, mas que por vezes odiei jogar.
