Vamos começar com honestidade. Eu não pego num Dragon Quest clássico à espera de uma revolução. Eu pego nele à espera de conforto. É o equivalente, no mundo dos videojogos, a um cobertor quente e uma caneca de chá num dia de chuva; uma fórmula tão pura e imutável que se tornou o nosso ponto de referência para o género que ela própria inventou. É o “arroz com feijão” original, e por vezes é só isso que queremos.
Mas este DRAGON QUEST I & II HD-2D Remake não é bem isso. Lançado no encalço do soberbo remake de Dragon Quest III do ano passado, este pacote chega para fechar a “Trilogia de Erdrick”, e fazer da forma mais estranha possível: cronologicamente ao contrário. Nós acabámos de jogar a origem; agora jogamos as consequências.
E é aqui que a coisa se complica. Este pacote, que joguei de fio a pavio na sua versão para o PlayStation 5, não é uma experiência unificada. É um estudo de caso fascinante sobre duas filosofias opostas de restauro de arte. É uma caixa que contém duas obras: uma foi polida por mestres; a outra foi “restaurada” com o mesmo nível de cuidado daquele infame Ecce Homo da Espanha.

A Square Enix e a Artdink, os estúdios por trás disto, olharam para os dois pilares fundadores do JRPG e tomaram duas decisões radicalmente diferentes. Olharam para Dragon Quest II e disseram: “Isto era ambicioso, mas estava quebrado; vamos consertá-lo.” E olharam para Dragon Quest I e disseram: “Isto era simples e elegante; vamos enchê-lo de tralha até que ninguém o reconheça.”
O Peso do Preenchimento
A história original de Dragon Quest I era um haiku. Um poema minimalista. O reino está em perigo. O Dragonlord raptou a Princesa Gwaelin. Você, o descendente do herói lendário Erdrick, tem de salvar o mundo. Fim. Era uma tela em branco onde nós, jogadores, projetávamos a aventura. Tinha a elegância da simplicidade absoluta.
Este remake não confia nessa elegância. Pelo contrário, parece ter vergonha dela. Numa tentativa desesperada de justificar um preço moderno, os criadores encheram esta fábula de 10 horas com tanto “conteúdo” novo que o jogo mal consegue respirar. A narrativa, que agora se arrasta por 15 ou 20 horas, está inchada com novas aldeias de fadas e anões, uma guarda real com quem temos de falar, e missões secundárias que parecem ter sido escritas por um comité.
Não me interpretem mal, há uma luz brilhante: a Princesa Gwaelin. Ela deixou de ser um troféu passivo para se tornar uma personagem com agência e personalidade. Uma melhoria de 100%. Mas ela é a exceção. O resto deste preenchimento narrativo é apenas isso: preenchimento. É como tentar adicionar novos capítulos a Moby Dick; apenas dilui o impacto do que já era perfeito na sua simplicidade.

E depois, temos Dragon Quest II. Aqui, a cirurgia foi um sucesso absoluto. O original era uma história maior sobre legado, sobre os três primos herdeiros de Erdrick que se juntam para salvar o mundo. Mas era uma história contada em sussurros, onde os personagens eram meros sprites sem personalidade.
O remake pega nessa ambição e dá-lhe um coração. Finalmente. Os heróis silenciosos são agora equilibrados por uma equipa vibrante, com uma dinâmica familiar que é genuinamente encantadora. E a maior mudança, a adição de uma quarta personagem jogável e permanente, Matilda, a Princesa de Cannock, não parece uma adição; parece que ela esteve lá o tempo todo e nós é que não tínhamos reparado. Onde DQI adicionou eventos para preencher o tempo, DQII adicionou caráter para preencher a alma. E isso faz toda a diferença.
Um Herói Contra o Mundo (e a Matemática)
É no gameplay que a tragédia de Dragon Quest I se consuma. E juro, o que fizeram aqui devia ser estudado como um exemplo de “o que não fazer”. O original de 1986 tinha uma regra de ouro: o combate era sempre um contra um. O herói contra um Slime. O herói contra um Golem. Era uma série de duelos justos.
Este remake atira essa regra pela janela. Agora, tal como nos jogos mais modernos, o herói enfrenta grupos de inimigos. Três, quatro, cinco monstros de uma vez. O problema? O herói continua sozinho. Completamente sozinho.
Isto não é uma questão de dificuldade; é uma falha de design fundamental. É um erro de matemática. As batalhas, especialmente contra chefes que agora têm múltiplas ações por turno, transformam-se em pesadelos de pura sorte. Não há estratégia quando se é “explodido” mais rápido do que se consegue curar. Passei horas a olhar para o ecrã a pensar quem, em sã consciência, aprovou isto. É a versão menos divertida de Dragon Quest I que alguma vez joguei.

É tão quebrado, tão fundamentalmente injusto, que os próprios criadores parecem ter-se apercebido no último minuto. E a “solução” deles? Enterrar uma opção de invencibilidade nos menus de dificuldade. Isso não é um modo de jogo; é uma admissão de culpa. É um pedido de desculpas dos programadores.
E depois, mais uma vez, Dragon Quest II salva o dia. O original era famoso por ser um “slog”, um jogo penoso, brutalmente difícil e que exigia horas infindáveis de grinding (o ato de matar monstros repetidamente para ganhar níveis). Este remake elimina isso. O grinding desapareceu, substituído por conteúdo de história real que nos leva ao nível certo.
A adição da quarta personagem, Matilda, torna o grupo perfeitamente equilibrado. O jogo que era notoriamente difícil tornou-se agora justo. O jogo que era justo (DQI) tornou-se notoriamente difícil. A ironia é deliciosa e trágica. Onde o loop de gameplay de DQI é um ciclo de frustração, o de DQII é um fluxo viciante de descoberta, estratégia de grupo e progressão recompensadora.
O Bisturi e o Martelo
Vamos falar das mecânicas, porque é aqui que vemos as duas ferramentas da equipe de restauro em ação: o bisturi e o martelo.
O bisturi foi usado para aplicar mudanças de “Qualidade de Vida” em ambos os jogos, e aqui, só tenho elogios. São mudanças cirúrgicas que demonstram um profundo respeito pelo nosso tempo. A maior delas? A penalidade de morte. No original, morrer significava perder METADE de todo o ouro que se carregava. Era a definição de frustração. Agora? Isso desapareceu. Morreu? Pode recomeçar a luta do chefe imediatamente ou carregar o último ponto de gravação. Acabou-se a punição que apenas desperdiçava tempo.
Adicionem a isso a capacidade de salvar em qualquer lugar, um rastreador de missões decente e, o mais importante, a capacidade de acelerar as batalhas, e temos um pacote que removeu todas as arestas arcaicas que ninguém, em 2025, sentiria falta.
Mas depois, o martelo. Para “resolver” o desastre de equilíbrio que criaram em DQI, os criadores introduziram novas mecânicas de combate: Sigils (Selos) e Scrolls (Pergaminhos). Os Scrolls são itens que ensinam novas habilidades, e os Sigils são modificadores passivos que dão bónus em combate.
A ideia, em si, é boa. Em Dragon Quest II, estas mecânicas brilham. Elas adicionam uma camada de personalização e estratégia a um grupo de quatro personagens. Eu diverti-me a experimentar, a dar ao meu mago uma habilidade de cura, ou a otimizar o meu guerreiro para contra-atacar.
Em Dragon Quest I, contudo, estas mesmas mecânicas parecem pensos rápidos desesperados. São tentativas fúteis de tapar o buraco que o martelo do 1-contra-muitos abriu na estrutura do jogo. Elas não resolvem o problema de se estar sozinho e sobrecarregado; apenas o tornam ligeiramente menos doloroso, o que é muito diferente de o tornar divertido.
O Museu que Respira
Vamos ser claros: este pacote é deslumbrante. A estética HD-2D, que combina sprites 2D nostálgicos com ambientes 3D deslumbrantes, é um ajuste perfeito para o estilo artístico imbatível do falecido Akira Toriyama. Cada monstro, desde o Slime mais básico até ao Dragonlord, está vivo com animações fluidas e expressivas. Os castelos são grandiosos, as masmorras são claustrofóbicas e os efeitos de água e luz são de chorar por mais.
Mas há um “mas”. O jogo é tão polido, tão perfeito, que por vezes parece um diorama de museu. É uma recriação imaculada, mas sentimo-nos como observadores a olhar para dentro de uma caixa de vidro, não como participantes.
E o que é que quebra esse vidro e nos puxa para dentro? O áudio.

A banda sonora orquestrada é tudo o que se podia esperar de Dragon Quest: épica, nostálgica e atemporal. Mas a verdadeira estrela, o elemento que eleva esta experiência de “boa” para “excelente”, é a dublagem.
Pela primeira vez, estes mundos têm voz. E que voz. A qualidade é de primeira linha, infundindo emoção e profundidade em narrativas que, no papel, são simples. A localização optou por um “sabor Shakespeareano” deliberado, cheio de “thou” (vós) e “thee” (convosco). Já vi gente a queixar-se disto, dizendo que é arcaico. Eu discordo veementemente. Esta escolha de linguagem não é um bug; é a característica principal. É o que dá a estas fábulas o peso mítico que elas merecem. Trata este conto de fadas fundador com a seriedade de uma lenda, e é a dublagem, mais do que os gráficos, que faz este museu respirar.
A Perfeição Inerte
E quanto à versão de PlayStation 5, especificamente? Bem, é uma lição de eficiência e de preguiça.
O desempenho é, numa palavra, perfeito. O PlayStation 5, coitado, nem transpira. O jogo oferece dois modos: um modo “Gráficos” e um modo “Desempenho”. A piada? Ambos rodam a 60 quadros por segundo sólidos. A diferença é que o modo Gráficos é mais nítido, enquanto o modo Desempenho é ligeiramente mais desfocado. A recomendação é óbvia: fiquem no modo Gráficos. A taxa de quadros é estável, e o jogo é lindo.
Os tempos de carregamento (load times) são, para todos os efeitos, inexistentes. Carregar o jogo a partir do menu do PS5 demora 7 segundos. Entrar numa batalha ou numa cidade? 1 a 2 segundos. É instantâneo.
A Relíquia que Finalmente Vive
No final, DRAGON QUEST I & II HD-2D Remake é um pacote obrigatório, mas não pelas razões que a Square Enix provavelmente queria. É uma coleção profundamente dividida, um testemunho de como a nostalgia pode ser uma força criativa ou uma prisão.
O remake de Dragon Quest I é um fracasso. É um potencial desperdiçado. É um belo cadáver, embalsamado em padding narrativo e apresentado num diorama HD-2D. Ao tentar “modernizar” a perfeição minimalista, os criadores destruíram a sua magia, criando um jogo quebrado por um equilíbrio de jogo terrível.
Mas o remake de Dragon Quest II… ah, esse é a joia da coroa. É uma reimaginação transformadora. É uma redenção. Pega num clássico notoriamente falhado e, com a coragem de o reestruturar, de o reequilibrar e de lhe dar um coração, transforma-o naquilo que ele sempre devia ter sido.
A ironia final é que compramos este pacote a pensar no Dragon Quest I, a lenda que todos amamos. Mas o jogo que nos fica na memória é o Dragon Quest II, o “patinho feio” que todos aprendemos a odiar. O remake de Dragon Quest I é o argumento mais forte para nunca mais lhe tocarem. O remake de Dragon Quest II prova que ele nunca foi um jogo mau; estava apenas à espera, durante quase quarenta anos, das ferramentas certas para se tornar uma obra-prima. E finalmente, tornou-se.
NOTA
CONSIDERAÇÕES
Este pacote é a definição de uma experiência dividida. O remake de Dragon Quest I é um fracasso; uma tentativa de "modernizá-lo" que quebrou seu equilíbrio e destruiu sua magia. No entanto, o remake de Dragon Quest II é uma obra-prima de redenção, transformando um clássico falho na joia que sempre deveria ter sido. Você compra pela lenda do primeiro jogo, mas fica pela perfeição inesperada do segundo.
