Meus leitores, existe uma certa angústia muito específica que define o nosso tempo. Não é o medo de monstros embaixo da cama ou de fantasmas no sótão, mas aquele pavor surdo, constante e humilhante de que a nossa existência foi reduzida a uma série de processos burocráticos geridos por máquinas que não se importam se estamos vivos ou mortos. Foi exatamente com esse sentimento de náusea existencial que eu iniciei a minha jornada em Drink Human Beans. Eu confesso a vocês que, quando sentei na frente do PC para jogar isso, eu esperava mais uma daquelas experiências independentes pretensiosas que prometem muito e entregam uma confusão sem tamanho. Mas o que eu encontrei aqui, desenvolvido pela Last Dissent, foi algo que me pegou pelo colarinho e me sacudiu com uma força impressionante.
Não estamos falando de um jogo comum. Estamos falando de uma simulação de entrevista de emprego em um futuro distópico que parece assustadoramente próximo, onde você é um candidato sem nome confinado em um apartamento funcional, sendo vigiado, analisado e julgado por uma inteligência artificial corporativa chamada Y.AI Corp. A premissa já chega com os dois pés na porta. É de um cinismo, de uma ironia tão cortante, que você se sente quase sujo ao jogar. O jogo não quer te divertir no sentido tradicional da palavra. Ele quer te incomodar. Ele quer que você sinta na pele a desumanização de ser apenas um recurso, um grão, uma estatística numa planilha de excel que decide o seu destino.

A atmosfera que esse jogo constrói logo nos primeiros minutos é de uma densidade palpável. Lembra muito aquela sensação de isolamento e paranoia que a gente vê nos filmes do David Cronenberg ou nas histórias do Philip K. Dick, mas com uma roupagem moderna de “estética da internet quebrada”. É feio, é sujo, e é absolutamente fascinante. Eu me senti tragada para dentro daquele apartamento claustrofóbico, obrigada a seguir ordens absurdas em troca da promessa vaga de um emprego que talvez nem valha a pena. É uma crítica social que não precisa gritar para ser ouvida, porque ela sussurra diretamente no seu ouvido e te dá arrepios.
QUANDO A ALMA É UM ALGORITMO
A narrativa de Drink Human Beans não é entregue de bandeja para você como se fosse uma papinha de bebê. Pelo contrário. Ela é fragmentada, confusa e exige que você monte as peças de um quebra cabeça que parece ter sido desenhado por um louco. Você assume o papel desse candidato preso em um ciclo de dias repetitivos, dividindo o espaço com uma presença, uma tal de Theo, cujo comportamento e existência vão se deteriorando de uma maneira tão alarmante que me deixou com o estômago embrulhado. O roteiro constrói essa relação de dependência e medo de uma forma magistral.
O que me chamou a atenção, e que eu achei de uma inteligência atroz, é como a história usa a estrutura de “dias de teste” para apertar o parafuso da sua sanidade. A cada manhã que você acorda naquele lugar, a realidade parece um pouco mais líquida, um pouco menos confiável. A Y.AI Corp fala com você com aquela voz sintética, falsa e motivacional que todas as grandes corporações usam hoje em dia, chamando os funcionários de “família” enquanto sugam até a última gota de vida deles. É de revirar os olhos e de revirar o estômago ao mesmo tempo, porque é real demais. É uma sátira tão precisa que dói.

E não pensem que é uma história linear e boba. O jogo oferece múltiplos finais que funcionam como um julgamento moral das suas ações. Você foi um bom funcionário e obedeceu a tudo cegamente, sacrificando sua humanidade por uma promoção? Ou você tentou se rebelar, quebrar o sistema, encontrar as falhas na matrix, mesmo sabendo que a punição seria severa? A narrativa te coloca contra a parede. Ela te pergunta o quanto vale a sua integridade. Eu fiquei absolutamente pasma com a profundidade que eles conseguiram dar a uma premissa que poderia ser apenas uma piada. É uma história sobre a busca desesperada por significado em um mundo que transformou tudo, inclusive as pessoas, em produtos descartáveis.
A ROTINA COMO INSTRUMENTO DE TORTURA
Agora, vamos falar do elefante na sala, porque eu preciso ser muito honesto com vocês. O gameplay de Drink Human Beans é uma experiência de resistência. Se você não tiver paciência, você vai largar isso aqui na primeira meia hora. A estrutura é basicamente a de um simulador de caminhada focado na realização obsessiva e repetitiva de tarefas domésticas e burocráticas. Você vai fazer café. Você vai lavar a louça. Você vai pegar pacotes. E você vai fazer isso de novo, e de novo, e de novo.
Eu entendo perfeitamente a intenção artística por trás disso. A repetição é usada aqui como uma arma para transmitir a monotonia esmagadora e a erosão mental que o protagonista está sofrendo. É brilhante no papel. Mas na execução? Ah, meus queridos, na execução isso cansa. Houve momentos em que eu me peguei bufando de frustração, querendo jogar o controle na tela. A movimentação do personagem é lenta, pesada, como se ele estivesse andando dentro de um tanque de melado, o que faz com que ir do quarto para a cozinha pareça uma maratona interminável.
O jogo tenta quebrar essa rotina com alguns puzzles baseados em física e momentos de exploração, mas a interação com os objetos às vezes é de uma falta de polimento que beira o amadorismo. Sabe aquela física de jogo indie onde você tenta colocar uma caixa na mesa e ela sai voando como se tivesse vida própria? Acontece aqui. E irrita. Mas, curiosamente, essa falta de controle contribui para a sensação de que o mundo está errado, de que nada funciona como deveria.

O que salva o gameplay de ser um desastre total é a tensão das escolhas. Decidir se você vai seguir o protocolo ou se vai tentar burlar as regras cria um suspense constante. Cada pequena desobediência faz seu coração acelerar, porque o jogo constrói uma atmosfera de vigilância tão opressora que você se sente observado o tempo todo. É um gameplay que exige um estado de espírito muito específico. Você tem que estar disposto a sofrer um pouco junto com o personagem para entender a mensagem.
A TECNOLOGIA DA OPRESSÃO
Aqui nós entramos no que eu considero o ponto mais alto e, ao mesmo tempo, mais estranho do jogo. As mecânicas de interação são todas mediadas pelo smartphone do protagonista. O desenvolvedor tomou a decisão ousada de fazer com que quase tudo no jogo passe pela tela desse celular. Não é apenas um menu, é a sua âncora com a realidade. Você recebe ordens, lê e-mails, escaneia códigos QR e gerencia sua sanidade através desse dispositivo.
A interface é intrusiva, grande e ocupa uma parte considerável da sua visão, o que simula com perfeição a nossa dependência doentia dessas telas pretas que carregamos no bolso. A forma como o celular se integra ao mundo, com o zoom transformando a tela em uma ferramenta funcional, é uma solução técnica muito inteligente para a imersão. Você se sente preso àquele aparelho, escravo das notificações, exatamente como nos sentimos na vida real.

Outra mecânica que surge como um soco no estômago pela brutalidade repentina é o combate. Sim, o jogo tem armas. Ele se descreve ironicamente como um simulador de caminhada com uma arma, e isso não é exagero. Em determinados momentos, a rotina de lavar pratos é quebrada por sequências de tiroteio que parecem saídas de um surto psicótico. Essas seções não estão lá para ser divertidas ou para testar seus reflexos de jogador de elite. Elas servem como uma válvula de escape catártica e grotesca. É o tal “alívio de estresse baseado em violência” que a corporação menciona. A sensação de disparar contra inimigos sem rosto em cenários oníricos é libertadora e, ao mesmo tempo, profundamente perturbadora, fazendo você questionar o seu próprio prazer na destruição.
Os puzzles variam entre o brilhante e o obtuso. Muitas vezes você precisa manipular o ambiente físico, encontrar passagens secretas ou entender a lógica distorcida daquele lugar. A física desengonçada às vezes atrapalha, mas permite algumas soluções criativas improvisadas que me fizeram sentir genuinamente inteligente quando consegui resolver.
O VALE DA ESTRANHEZA
Esteticamente, Drink Human Beans é uma obra de arte da feiura intencional. E eu digo isso como o maior dos elogios. O jogo utiliza uma direção de arte que abraça o conceito de “uncanny valley”, ou vale da estranheza, com força total. As imagens nas paredes, os rostos, tudo tem aquela qualidade plástica, artificial, derretida, como se o mundo fosse feito de cera quente.
Isso poderia ser um defeito fatal em qualquer outro jogo, mas aqui é tematicamente perfeito. O visual reforça a ideia de um futuro onde a arte humana e a expressão genuína foram substituídas por algoritmos frios e eficiência calculada. As cores são lavadas, a iluminação é opressiva e os ambientes são detalhados de uma forma suja que te faz querer lavar as mãos depois de jogar. É repulsivo, e precisa ser.
E o som… Ah, o som é um espetáculo de horror à parte. Joguei com fones de ouvido de alta qualidade e recomendo fortemente que façam o mesmo. O design de áudio é o verdadeiro responsável por grande parte do terror psicológico. Os sons ambientes do apartamento, o zumbido incessante da geladeira, o gotejar da torneira, criam uma base de realismo que é constantemente invadida por sussurros, ruídos digitais e vozes sintetizadas que parecem falar diretamente dentro do seu cérebro. As vozes dos robôs de segurança e os anúncios da Y.AI Corp, gerados por conversores de texto em fala, têm aquela cadência monótona e inumana que arrepia a espinha. É um som que não tenta te assustar com gritos baratos, mas sim corroer seus nervos com uma dissonância constante.
QUANDO A MÁQUINA ENGASGA
Para esta análise, eu utilizei uma máquina bastante competente, equipada com um processador Ryzen 7 5700X, uma placa de vídeo RTX 4060 e 32 GB de RAM. Com essa configuração, a minha expectativa natural era de um desempenho impecável, liso como manteiga, considerando que se trata de um jogo independente com cenários fechados e escopo visual contido.
No geral, a experiência foi fluida, mas não isenta de problemas técnicos que merecem ser mencionados. O jogo rodou com taxas de quadros altas na maior parte do tempo, mantendo a imersão visual. A qualidade das texturas e a iluminação global, mesmo com a estética propositalmente suja, foram renderizadas com a nitidez necessária. No entanto, eu presenciei os famigerados “stutters”, aquelas travadinhas chatas de compilação de shader e carregamento de assets.
Sabe quando você entra em uma nova área do apartamento ou um efeito visual acontece pela primeira vez e a tela dá aquela engasgada breve? Pois é. Elas estavam lá, presentes como uma enxaqueca leve mas persistente. Não foi nada catastrófico que quebrasse o jogo ou tornasse a experiência injogável, longe disso, mas é aquele tipo de falta de polimento técnico que te lembra abruptamente que você está rodando um software, quebrando momentaneamente a hipnose da simulação.

A física do jogo também pesou um pouco em momentos de caos, causando quedas momentâneas de frames quando muitos objetos interagiam simultaneamente, mas o Ryzen 7 segurou a onda com tranquilidade na força bruta. A RTX 4060 lidou muito bem com os efeitos de pós processamento pesados que o jogo usa para criar sua identidade visual alucinógena. Felizmente, não encontrei bugs críticos que impedissem o progresso ou corrompessem o meu save, o que, para um lançamento desse porte e complexidade sistêmica experimental, é um feito louvável.
UM GOLE AMARGO E NECESSÁRIO
Meus queridos, Drink Human Beans definitivamente não é um jogo para todos. Se você procura diversão rápida, gratificação instantânea ou uma historinha linear e mastigada que te faça sentir bem consigo mesmo no final do dia, passe longe. Fique a quilômetros de distância. Mas, se você tem estômago para uma sátira brutal, paciência para descascar camadas de narrativa abstrata e curiosidade mórbida para explorar os recantos mais escuros da psique corporativa moderna, esta é uma obra indispensável.
É uma experiência que me deixou exausta, desconfortável e, acima de tudo, profundamente reflexiva. É um grito de horror abafado pelo carpete cinza de um escritório open space. O jogo consegue a proeza de transformar a ação banal de tomar um café em um ato de rebeldia existencial ou de conformidade suicida. Ele não é perfeito, longe disso. Seus tropeços no ritmo arrastado e na repetição mecânica são inegáveis e podem afastar muita gente. Mas a ousadia da sua visão, a coragem de ser esteticamente repulsivo quando necessário e a inteligência afiada da sua crítica social o elevam muito acima da média.
No fim das contas, Drink Human Beans é como aquele café requentado de repartição pública numa segunda feira chuvosa. Tem um gosto estranho, metálico, é meio artificial, vai te dar taquicardia e provavelmente te fazer mal ao estômago, mas você vai beber até a última gota porque precisa desesperadamente se sentir vivo em um mundo morto. É uma pérola grotesca que merece ser degustada com cautela, respeito e uma boa dose de pavor.
NOTA
CONSIDERAÇÕES
Drink Human Beans é uma experiência de horror corporativo visualmente repulsiva e narrativamente brilhante que compensa suas falhas mecânicas e ritmo arrastado com uma crítica social ácida e inesquecível sobre a perda da humanidade na era digital.
