Minha gente, olha, eu preciso começar dizendo que existe uma certa magia, quase uma alquimia, em encontrar beleza naquilo que, à primeira vista, parece apenas desordem. Nós vivemos cercados por linhas retas, por planejamentos urbanos assépticos e por essa obsessão contemporânea com a perfeição. E é exatamente por isso que ShantyTown, essa pequena pérola desenvolvida pelo Erik Rempen e trazida a nós pela Kinephantom Games, me pegou de um jeito tão avassalador.

Ao contrário dos simuladores de cidade tradicionais, que nos colocam na posição de um deus burocrata preocupado com taxas de impostos e zoneamento industrial, ShantyTown nos convida a descer ao nível da rua, a sujar os sapatos na poeira digital e a entender a arquitetura da necessidade. É um jogo sobre o instinto, sobre o “fazer caber”, sobre aquela gambiarra estética que, no fim das contas, conta a história de quem vive ali muito melhor do que qualquer arranha-céu espelhado.
De Um Experimento à Selva de Pedra
É fascinante, para não dizer inspirador, observar a trajetória desse projeto. O Erik Rempen, a mente criativa por trás da Silk Softworks, não é um novato tateando no escuro. Ele já nos entregou Kainga: Seeds of Civilization, um jogo de estratégia tribal complexo e fascinante. Mas aqui, em ShantyTown, ele faz uma curva brusca, quase um “cavalo de pau” criativo, em direção ao contemplativo.
O jogo está em gestação há quatro anos. Quatro anos! O que começou como um experimento modesto de construção evoluiu para algo com uma “alma” muito própria. E agora, com 2026 batendo na nossa porta — faltam literalmente dias para a virada do ano —, a ansiedade pelo lançamento completo em 16 de abril começa a se transformar em uma contagem regressiva palpável. Já não é mais um sonho distante; é uma realidade que se avizinha.

A premissa narrativa é de uma simplicidade elegante. Você não é um prefeito; você é um agrimensor do governo, um funcionário com uma prancheta e uma câmera, encarregado de viajar por essas terras e documentar 20 localidades distintas. Não há grandes vilões, não há guerras. A sua missão é visitar locais como uma casa de chá no cais ou um cassino flutuante, e “descobrir” a história do lugar através dos objetos que você coloca. É uma narrativa ambiental pura, onde uma bicicleta encostada num muro ou um varal de roupas conta mais sobre a vida ali do que mil linhas de diálogo.
A Arte de “Fazer a Mala”
Agora, vamos falar do que realmente importa: a sensação de jogar. Sabe aquela angústia gostosa de fechar uma mala de viagem que já está cheia, mas você precisa enfiar mais um livro ou um par de sapatos? O Erik Rempen descreve o gameplay de ShantyTown exatamente assim: “Como fazer uma mala, sempre cabe mais uma coisa”. E é brilhante.
Esqueça a grade rígida. Esqueça o grid. Aqui, a construção é guiada pelo instinto e pela física. Você tem um espaço limitado, muitas vezes vertical e apertado, e precisa empilhar lojas, residências e serviços de forma orgânica. O sistema funciona através de um “deck” de itens: você recebe três opções de objetos; assim que posiciona um, outro surge para tomar seu lugar. Isso cria um fluxo contínuo, quase rítmico, de decisão e criação, eliminando aquela paralisia da escolha tão comum em jogos do gênero.
E não pense que é só jogar as coisas de qualquer jeito. O jogo te dá objetivos opcionais para guiar a criatividade. Para um edifício ser considerado “completo” e liberar novos itens, ele precisa de luz, utilidades e decorações. E o clímax de cada nível não é um “Mission Accomplished” explodindo na tela, mas sim o uso do Modo Foto. Você precisa fotografar sua criação para o seu dossiê. É o jogo te forçando a parar, olhar e apreciar o que você fez, transformando você de construtor em documentarista.
Mecânicas: Polimento e Qualidade de Vida
Eu preciso destacar o quanto a Silk Softworks ouviu o feedback da comunidade. As versões anteriores da demo sofriam com uma câmera meio “travada”, o que num jogo de diorama é um pecado capital. Mas, minha gente, as atualizações recentes trouxeram uma câmera nova, muito mais suave, com direito a modos de “caminhada” e “drone”. Isso muda tudo.
Poder descer do seu pedestal divino e caminhar pelas ruelas que você acabou de criar, vendo os grafites de perto e sentindo a escala dos prédios, é imersivo demais. Além disso, a adição de um “deck” visual à esquerda da tela e a possibilidade de trocar itens dentro de um grupo mostram um respeito pelo tempo e pela paciência do jogador. O jogo quer que você relaxe, não que você lute contra a interface. É o conceito japonês de Wabi-sabi — a aceitação da imperfeição — aplicado ao game design.
Visual e Áudio: Uma Sinfonia Vaporwave em Unreal Engine 5
Aqui é onde ShantyTown deixa de ser apenas um “joguinho de construir” e se torna uma obra de arte. Visualmente, é de cair o queixo. O jogo utiliza a Unreal Engine 5, e o uso das tecnologias Lumen (iluminação global dinâmica) e Nanite (geometria virtualizada) cria uma densidade de detalhes que é quase obscena.
A luz não é estática; ela “sangra” pelas cores, reflete nas poças d’água, reage às mudanças do ciclo dia/noite. Ver o sol se pôr e as janelas dos seus prédios acenderem uma a uma, transformando a favela de concreto num farol de vida, é uma das coisas mais lindas que vi nos últimos tempos.

E o que dizer do áudio? A trilha sonora original é composta pelo artista Macroblank, uma lenda do gênero Barber Beats (um subgênero mais sombrio e minimalista do Vaporwave). Para quem não conhece, imagine músicas de lounge dos anos 80 desaceleradas, com uma batida seca, criando uma atmosfera de “salão de beleza no fim do mundo”. Essa escolha é genial. A música não é feliz, nem triste; ela é anestésica. Ela evoca a solidão confortável de estar sozinho numa cidade gigante. É a trilha sonora perfeita para empilhar caixas de ar condicionado enquanto chove lá fora.
Desempenho: O Preço da Beleza (Ryzen 7 5700x + RTX 4060)
Agora, vamos ao “elefante na sala”. Rodar Unreal Engine 5 com Lumen e Nanite exige máquina. No nosso setup (Ryzen 7 5700x, RTX 4060, 32GB RAM), a experiência foi, no geral, satisfatória, mas com ressalvas importantes.
A RTX 4060, com seus 8GB de VRAM, é uma placa valente, mas o Lumen cobra seu preço. Existem os famosos “micro-stutters” (aquelas engasgadinhas breves), especialmente quando você move a câmera rapidamente ou quando a cena está muito carregada de geometria. Isso acontece porque o barramento de memória da 4060 é um pouco estreito para o volume de dados que a UE5 gosta de trafegar.
Um Abraço na Alma Urbana
ShantyTown é, sem sombra de dúvida, um dos projetos mais promissores e sensíveis no horizonte dos jogos independentes. Ele entende que uma cidade não é feita de ruas e prédios; é feita de memórias, de improvisos e de vida.
Para quem busca gerenciamento hardcore, passe longe. Mas se você, como eu, encontra uma beleza estranha na bagunça, no fio desencapado e na parede descascada, esse jogo vai te abraçar. A versão de PC, mesmo ainda como demo, já mostra uma maturidade artística impressionante. A combinação da liberdade criativa com a trilha sonora hipnótica do Macroblank cria um estado de transe do qual é difícil querer sair.
Estamos a pouquíssimos dias de 2026. Abril está logo ali na esquina. Eu mal posso esperar para fazer minhas malas e me mudar de vez para essa cidade torta. É primoroso, é humano, e é imperfeito — exatamente como a vida deve ser.
