Existe uma sensação muito específica que define a infância de quem cresceu nos anos 2000. É o cheiro de poeira e papelão de uma caixa de jogo de tabuleiro guardada há muito tempo. É o toque do plástico barato e leve das miniaturas. É a promessa de aventura contida em um punhado de dados e algumas cartas. É exatamente essa sensação, essa memória multissensorial, que Dark Quest 4 está desesperadamente tentando engarrafar e me vender. E, por um momento, eu quase comprei.
Desenvolvido pela Brain Seal Ltd., Dark Quest 4 chega ao PC sem nenhum disfarce. Ele não é uma sequência no sentido tradicional. Ele é uma carta de amor, ou talvez um pedido de resgate, a um clássico chamado HeroQuest. Este é um RPG tático de masmorra, por turnos, que emula com devoção quase religiosa a experiência de jogos como o próprio HeroQuest, Descent ou Dungeon Saga.
Não me entenda mal, eu sei o que estamos fazendo aqui. A franquia Dark Quest teve seus percalços. O segundo jogo foi um clone de HeroQuest bastante querido. O terceiro tentou… inovar. Os fãs detestaram. A jogabilidade mudou, a fórmula quebrou. Dark Quest 4, portanto, não é um passo à frente. É um recuo estratégico, uma correção de curso deliberada de volta ao território seguro. É um pedido de desculpas da desenvolvedora para sua base de fãs, dizendo “nós entendemos, vocês só queriam HeroQuest de novo”.

A questão que definiu minhas horas neste mundo não foi se ele era um bom jogo, mas se essa devoção ao passado é um tributo charmoso ou uma admissão de covardia criativa. A resposta, como tudo neste jogo, é complicada.
O Feiticeiro na Torre de Papelão
Vamos tirar logo isso do caminho: não há história.
O marketing promete uma “campanha com mais de 30 horas de história”, o que é uma forma muito generosa de dizer que há 30 missões artesanais conectadas por um fiapo de narrativa. O Feiticeiro das Trevas, que aparentemente estava de férias nos últimos jogos, voltou. Ele tem um fantoche chamado Gulak, que comanda legiões de monstros. Vilarejos estão desaparecendo. Nós, um grupo de três heróis, somos os únicos que podemos detê-los.
Se isso soa como a sinopse na contra-capa de qualquer jogo de fantasia dos últimos quarenta anos, é porque é. A trama em Dark Quest 4 não é uma história, é um cabide. É o pretexto mínimo e necessário para justificar por que estamos, mais uma vez, em um calabouço matando goblins. A franquia nunca foi conhecida por seu lore profundo, mas aqui a simplicidade beira o funcionalismo cínico.
O jogo sabe disso. E ele terceiriza 100% de sua personalidade para sua única grande estrela: o “Mestre da Masmorra” com voz. O próprio Feiticeiro do Mal narra sua jornada. Ele zomba quando você cai em uma armadilha, descreve o cheiro mofado da sala e anuncia a chegada de novos monstros. A intenção é injetar “personalidade e atmosfera” em salas de pedra vazias.

Na prática, é uma aposta arriscada. Toda a experiência narrativa depende do carisma de um único ator de voz. Se você achar a performance dele (um vilão de desenho animado clássico) charmosa, o jogo ganha vida. Se você o achar irritante, repetitivo ou apenas medíocre, a experiência inteira desmorona, pois não há absolutamente nenhuma trama para sustentá-la. Para mim, ele foi um companheiro tolerável, mas esquecível, que insistia em me dizer o óbvio.
O Andar Travado do Bárbaro
O fluxo de jogo de Dark Quest 4 é exatamente o que você espera. Você monta sua equipe de três heróis (o Bárbaro, o Mago, o Anão… o Elfo foi cortado desta versão, aparentemente) e entra em um mapa dividido por grades. É um combate tático por turnos. Você move sua “figurinha”, usa uma ação (atacar, usar uma habilidade) e passa a vez. É simples, intuitivo e, por vezes, mortal.
O problema é que o jogo é assombrado por uma lentidão deliberada. Uma lentidão que flutua desconfortavelmente entre o “tático” e o “simplesmente tedioso”.
Minha maior frustração, o ponto que quase me fez parar de jogar, é uma decisão de design aparentemente pequena, mas enlouquecedora: seus heróis não podem se mover através uns dos outros. Eles são barreiras físicas sólidas.
Permita-me pintar o cenário: você está em um corredor estreito, com dois quadrados de largura. Seu Bárbaro está na frente, Anão no meio, Mago atrás. O Bárbaro mata o goblin que bloqueava o caminho. Ótimo. Agora, para avançar, o Bárbaro precisa mover seus 5 quadrados. Então, o Mago precisa mover seus 4 quadrados para o espaço que o Bárbaro desocupou. Então, o Anão precisa mover seus 4 quadrados para o espaço do Mago. Você gasta três turnos completos de todos os personagens apenas para organizar um “trenzinho” e andar por um corredor vazio. É um congestionamento em plena masmorra.

Eu entendo por que isso existe. Não é um bug, é uma característica. Em um jogo de tabuleiro físico, você não pode atravessar uma miniatura de plástico por outra. O Dark Quest 4 traduz essa limitação física literalmente para o digital. O problema é que o que é uma regra física aceita em um tabuleiro é apenas uma péssima Qualidade de Vida (QoL) em um videogame. O jogo fica tão obcecado em parecer um jogo de tabuleiro que se esquece de ser um bom videogame. Essa fidelidade mal aplicada é, ao mesmo tempo, seu maior charme e sua falha mais irritante.
Cartas Marcadas e Dados Viciados
Aqui está o coração do jogo. Este é o sistema que define se você vai amar ou odiar Dark Quest 4. E é um sistema em guerra consigo mesmo. É um cabo de guerra teológico entre o livre arbítrio e o destino predeterminado.
Primeiro, um esclarecimento vital: este não é um jogo de construção de baralhos (deck-builder). Suas habilidades são apenas representadas visualmente como “cartas de ação”. Na verdade, é um RPG bem direto. Você completa missões, ganha ouro, e retorna ao “Acampamento de Heróis”. Lá, você gasta seu ouro para desbloquear permanentemente novas habilidades (cartas) e melhorias passivas para seus heróis. Antes de cada missão, você personaliza seu personagem escolhendo quais dessas habilidades desbloqueadas você quer “equipar” para aquela jornada.
Este é o lado da estratégia. É o livre arbítrio. É onde eu senti que tinha controle. Eu podia montar um Mago focado em dano em área ou um Anão focado em atordoar inimigos. Eu preparava meu time, planejava sinergias. Eu me sentia inteligente.
Então, eu entrava na masmorra, e o jogo jogava todo o meu planejamento pela janela.
Bem-vindo ao lado do destino. O RNG. A Sorte. Os “dados” que, embora invisíveis, governam cada ação. Dark Quest 4 usa rolagens de dados para absolutamente tudo. A ordem do turno é rolada no início de cada combate. Você tem uma chance de acertar. O inimigo tem uma chance de defender. Você tem uma chance de desarmar uma armadilha. O Bárbaro tem uma chance de falhar em um teste de “Coragem” e perder o turno porque viu um esqueleto.
O jogo nem tenta esconder isso. Existe uma mecânica chamada “Skull of Fate” (Caveira do Destino), um evento aleatório que pode, sem motivo algum, roubar seu ouro, causar dano ou, se você tiver uma sorte absurda, te dar um ponto de vida.
Isso cria uma dissonância cognitiva brutal. Dark Quest 4 não é um jogo de tática no sentido moderno, como X-COM ou Baldur’s Gate 3, onde você pode otimizar e “resolver” um encontro. Dark Quest 4 é um jogo de mitigação de risco. É um cassino disfarçado de estratégia.
Você não joga para executar um plano brilhante; você joga para torcer para que seu plano não seja destruído por uma série de rolagens de dados ruins. Suas cartas de habilidade não são ferramentas para garantir a vitória. Elas são apenas uma forma de, por favor, lhe dar uma chance de não perder. Isso é profundamente polarizante. Ou você acha essa imprevisibilidade caótica emocionante, ou você a acha uma falta de respeito com o seu tempo e sua inteligência. Eu, honestamente, me inclinei fortemente para o segundo.
O Teatro de Miniaturas
Se as mecânicas são onde o jogo tropeça, o departamento de arte é onde ele dá um salto triunfante. Dark Quest 4 é lindo, mas de um jeito muito específico e inteligente.
O jogo vende sua estética de “tabuleiro vivo” com uma confiança impressionante. Os ambientes, os mapas, as paredes das masmorras, tudo tem um “visual de pintura a óleo” (oil-painted) que é absolutamente deslumbrante. É estilizado, é coeso, e dá ao mundo uma aparência de diorama feito à mão.
Mas a genialidade está nos personagens. Eles são “figurinhas animadas”. Eles não são modelos 3D complexos com animações de caminhada. Eles são estátuas de plástico digital que deslizam pelo tabuleiro. Quando atacam, eles não sacam a espada; a miniatura inteira “colide” com a miniatura inimiga, com um efeito de partícula.
Isso é brilhante. A Brain Seal Ltd. obviamente não tem o orçamento da Larian. Em vez de tentar criar animações 3D medíocres que pareceriam datadas e baratas, eles abraçaram essa estética de “peça de tabuleiro”. É uma solução que é, ao mesmo tempo, muito mais barata de produzir e infinitamente mais temática. Eles transformaram uma restrição de orçamento em uma escolha de design que reforça perfeitamente a fantasia do jogo. Eu aplaudo de pé.
O áudio, por sua vez, é funcional. O pilar, como mencionado, é o Mestre da Masmorra. Sua voz é a paisagem sonora. O resto, os sons de impacto, os cliques de armadilha, o tilintar de moedas, está tudo lá, mas não se destaca.
A Masmorra que Roda Liso… Quase
Eu joguei Dark Quest 4 na minha máquina: um Ryzen 7 5700x, uma RTX 4060 e 32 GB de RAM.
Vamos ser claros: os requisitos mínimos para este jogo pedem um processador Core2 Duo de 2007. Meu PC é um canhão nuclear projetado para matar uma mosca. Como esperado, o desempenho foi absolutamente impecável. Taxas de quadros travadas, carregamentos rápidos, nenhuma queda, nenhum engasgo. Seria um escândalo se fosse diferente. É um jogo tático por turnos com modelos simples; ele deve rodar em qualquer coisa.
Vale a Pena Montar o Tabuleiro?
Dark Quest 4 não é um jogo. É um espelho. O que você vê nele depende inteiramente do que você traz para a experiência.
Ele é uma tentativa bem-sucedida, até brilhante, de recriar digitalmente o HeroQuest, corrigindo o erro de percurso que foi Dark Quest 3. Ele acerta em cheio na estética, vendendo uma fantasia de “jogo de tabuleiro vivo” que é visualmente coesa e artisticamente inteligente.

Mas ele é um produto de seu tempo. Ou melhor, de um tempo que já passou. Ele falha como um jogo tático moderno porque é devoto demais de suas falhas originais. Ele celebra a lentidão irritante e se ajoelha perante o altar do RNG, tratando a pura sorte como se fosse um mecanismo de design válido. Ele não respeita seu planejamento.
Para quem é este jogo? Não é para o fã de estratégia tática. É para o nostálgico. É para a pessoa que, como eu, sente falta do cheiro daquela caixa de papelão, mas que hoje não tem mais tempo, paciência ou, francamente, amigos disponíveis para realmente montar um tabuleiro na mesa da sala. É HeroQuest para quem precisa jogar sozinho.
No final, Dark Quest 4 é o melhor jogo de HeroQuest que o dinheiro pode comprar. Mas ele também nos força a fazer uma admissão dolorosa: talvez o que amávamos no HeroQuest não fosse o jogo em si. Talvez fosse o fato de termos doze anos, nenhuma conta para pagar e três amigos gritando ao nosso redor. O jogo retornou; a magia, nem tanto.
NOTA
CONSIDERAÇÕES
Uma recriação de HeroQuest visualmente perfeita , mas que infelizmente também é fiel às suas piores e mais datadas mecânicas. É um jogo lento , governado inteiramente pela sorte , e que falha como uma experiência de estratégia moderna.
