Existe um subgênero de jogo que tem me fascinado ultimamente, algo que eu gosto de chamar de “Precariedade Aconchegante”. É um movimento. São jogos que olham para a ansiedade esmagadora e o vazio existencial do capitalismo tardio e decidem embrulhá-los em paletas de cores suaves, personagens fofinhos e trilhas sonoras relaxantes. Easy Delivery Co., o trabalho de estreia de Sam C, é o mais recente e, talvez, o mais perturbadoramente honesto desse grupo.
Na superfície, a premissa é a definição de cozy. Você é um bicho antropomórfico, que parece um gato perpetuamente cansado da vida, e acaba de aceitar um emprego na megacorporação Easy Co. O trabalho? Ser o novo (e único) entregador em uma cidade montanhosa rural, um lugar isolado, esquecido pelo tempo e perpetuamente coberto por uma neve que parece nunca derreter.
Eu preciso ser claro: a promessa de “relaxamento” é a primeira e mais potente mentira que Easy Delivery Co. conta.
Este não é um jogo sobre escapar da labuta diária. É um espelho. É uma simulação assustadoramente precisa da “lida”, de ser um trabalhador da gig economy, de ralar por “bem abaixo do salário mínimo”. A suposta dualidade do jogo, o “aconchegante” e o “arrepiante”, não são forças opostas. Elas são a mesma coisa. O aconchegante é o açúcar que a Easy Co. usa para fazer você engolir o veneno. E, meu Deus, como nós engolimos.
O PACOTE QUE VOCÊ NÃO QUER RECEBER
A narrativa de Easy Delivery Co. não é entregue a você; ela é algo que você precisa desenterrar, literalmente, debaixo da neve. Não existem cutscenes cinematográficas ou longos diários de áudio. A história é o que acontece nos espaços vazios entre uma entrega e outra. Ela está na arquitetura desolada, nos edifícios que parecem meras fachadas, e nas breves, estranhas conversas que você tem com os outros moradores.
Eles também são animais, todos reclusos, todos parecendo estar escondendo alguma coisa, nunca saindo de suas casas. Eles são apenas vozes e pedidos em um computador. A cidade inteira parece… errada. Inabitada. Um lugar que já foi vivo e agora é apenas um fantasma.

Rapidamente, você descobre o mistério central: o motorista de entregas anterior desapareceu. Simplesmente sumiu. E é aí que o suposto verniz “fofo” começa a rachar e descascar. A sensação de dirigir por aquelas estradas vazias, com a neve caindo, é de uma solidão profunda e opressora. Não é a solidão pacífica de Stardew Valley; é a solidão de ser a única coisa que se move em um cemitério.
Mas, para mim, a parte mais assustadora da história não é o mistério do motorista desaparecido. É a absoluta e total indiferença da sua empregadora, a Easy Co. Sua única interação com a gerência é através de um aplicativo seco e impessoal. Não há um “obrigado”. Não há um “cuidado com a neve”. Quando você descobre pistas sobre o seu antecessor, não há para quem ligar. A Easy Co. não se importa. Você é uma engrenagem. Se você desaparecer na neve, como o último motorista, eles simplesmente postarão um novo anúncio de emprego e contratarão o próximo gato.
A história mais sinistra aqui não é sobrenatural; é o terror banal e cotidiano da desumanização econômica. Você é descartável. E o jogo, com seus múltiplos finais, deixa claro que seu único valor está na sua eficiência em entregar pacotes.
A MAESTRIA DA REPETIÇÃO
O loop de gameplay é, em sua essência, a definição de trabalho. Você acorda no seu pequeno apartamento. Você liga o computador. Você aceita uma série de trabalhos de entrega postados pelos residentes. Você desce até sua adorável caminhonete Kei, carrega os pacotes na traseira e dirige. Você entrega. Você recebe centavos. Você repete.
E aqui, Easy Delivery Co. toma a sua maior e mais brilhante decisão de design: ele recusa a maior conveniência dos jogos modernos. Não há GPS. Não há mini-mapa. Não há uma seta brilhante no chão dizendo “vire aqui”.
Tudo o que você tem é uma bússola rudimentar que indica a distância em linha reta até o seu destino. Nos meus primeiros trinta minutos, eu odiei isso com todas as minhas forças. Eu me senti cego, incompetente. Eu me perdi inúmeras vezes. Eu dirigi em círculos. Eu caí de um penhasco. Eu estava furioso, frustrado e pronto para desistir.

E então, algo mágico aconteceu. Eu comecei a aprender.
Comecei a prestar atenção. Eu memorizei os pontos de referência. “Ah, a casa da Sra. Puff fica depois daquela ponte de madeira rangente.” “O posto de gasolina é o meu ponto de partida para as entregas na montanha.” “Aquela estrada é um beco sem saída.” A frustração inicial, intensa e crua, lentamente se transformou em uma profunda sensação de maestria. O jogo me forçou a realmente habitar seu espaço, a conhecer suas estradas tão bem quanto eu conheço o caminho da minha própria casa.
Isso é o que salva o jogo de ser apenas um “simulador de seguir setas”. A própria navegação é a habilidade central. E o ato de dirigir é genuinamente tátil. A física do caminhãozinho é leve, saltitante. Você sente o peso quando a caçamba está cheia. Você derrapa no gelo de uma forma que induz pânico. É divertido. Mas é aí que a dissonância cognitiva te atinge. O ato de dirigir é divertido, mas o trabalho é uma labuta monótona.
O MANUAL DE INSTRUÇÕES DA MISÉRIA
Se o loop de gameplay é o trabalho, as mecânicas são as ferramentas do seu opressor. Elas não existem para te capacitar; elas existem para te manter no limite. Você é governado por uma trindade de barras de sobrevivência que definem sua existência.
Primeiro, o combustível. Seu caminhão queima gasolina, e a gasolina é, nas palavras do próprio jogo, “drasticamente cara”. Quase todo o dinheiro suado que você ganha ao enfrentar a nevasca é imediatamente gasto no posto de gasolina, apenas para que você possa continuar trabalhando. Você não está ganhando para viver; está ganhando para trabalhar.

Segundo, sua energia. Seu personagem fica cansado. Se a barra de energia cair, você começa a se mover de forma “dolorosamente vagarosa”. A solução? Comprar café ou bebidas energéticas na loja de conveniência. Novamente, você está gastando seu salário mínimo inexistente apenas para se manter acordado o suficiente para terminar o turno. Você está literalmente pagando para se drogar e cumprir as metas de entrega.
Terceiro, e mais opressor: o frio. O jogo se passa em uma nevasca perpétua. Fique fora do seu caminhão por mais de um minuto e seu personagem começa a congelar. A tela escurece, o som fica abafado. O mundo lá fora é inóspito e está ativamente tentando te matar. O caminhão não é seu veículo; é o seu suporte de vida.
Como se isso não bastasse, os pacotes não são abstrações. Eles são objetos físicos com peso e física. Se você fizer uma curva fechada demais, ou bater em um banco de neve, as caixas voam da traseira do seu caminhão. Você tem que parar, sair no frio congelante, pegar a caixa e colocá-la de volta. Você não pode ser apenas rápido; você tem que ser cuidadoso.
Minha única reclamação mecânica real, a única coisa que parece um descuido de design em vez de uma opressão temática, é a câmera. Ela é fixa. Você não pode girá-la. Para olhar para trás, você tem que parar, mudar para a visão em primeira pessoa (que é claustrofóbica) e usar o retrovisor, ou simplesmente fazer um 180 completo com o caminhão. Dar ré para pegar um pacote que caiu é um exercício de pura agonia. É uma ferramenta de trabalho de baixa qualidade que você é forçado a usar, o que, pensando bem, talvez seja o ponto.
A TRILHA SONORA DO MEU COLAPSO CORPORATIVO
A apresentação de Easy Delivery Co. é onde sua tese central se torna mais clara. Visualmente, o jogo abraça orgulhosamente uma estética da era do PlayStation 1. É low-poly, simplista, sombrio e, francamente, genial.
Isso não é preguiça ou nostalgia barata. A baixa contagem de polígonos, os modelos “crocantes” e a paleta de cores desbotada não evocam memórias felizes de infância. Eles evocam medo. A baixa visibilidade por causa da neve, a escuridão constante e as formas indistintas no horizonte me lembraram menos de Spyro e mais de Silent Hill. O mundo parece um sonho febril, uma memória embaçada de um lugar que já foi feliz, mas agora está morto. Os visuais são opressores.
E então, em contraste direto e absoluto, há o áudio. Você entra no seu caminhãozinho rangente, liga o rádio, e é recebido por um oásis. A trilha sonora é espetacular. São 21 faixas que variam de lo-fi beats relaxantes a lounge suave e até drum n’ bass energético. Ocasionalmente, a música é interrompida por programas de rádio estranhos que só aumentam a sensação de isolamento.
É aqui que o jogo revela sua mão. Os visuais, as mecânicas e a história existem para te oprimir. A trilha sonora existe para te acalmar.

A música não é apenas música de fundo; é o seu mecanismo de enfrentamento. É o opiáceo. É a “vibe perfeita” que você coloca nos fones de ouvido para se anestesiar da monotonia do seu trabalho de 12 horas. É o jogo sabendo que o trabalho é horrível, e te dando a ferramenta exata que usamos no mundo real para sobreviver a ele: uma boa playlist.
QUANDO O CAMINHÃO ENGASGA
Eu joguei Easy Delivery Co. no PC, especificamente em uma máquina que está longe de ser modesta: um Ryzen 7 5700X, uma RTX 4060 e 32 GB de RAM. Vamos ser claros: uma configuração como essa deveria rodar um jogo feito em Unity com estética de PS1 como se fosse um bloco de notas. E, na maior parte do tempo, assim foi. O jogo manteve uma taxa de quadros altíssima em 1440p.
DEVOLVER AO REMETENTE
Easy Delivery Co. é uma experiência curta. Você pode ver tudo o que ele tem a oferecer em cerca de quatro a seis horas. O jogo nos viciou no loop que ele mesmo critica. Ele pegou a “lida”, a “monotonia bonita”, e a tornou tão palatável, tão satisfatória em sua maestria de navegação, que nós queríamos mais. Nós nos acostumamos com a exploração. Nós desenvolvemos uma Síndrome de Estocolmo corporativa.
Nós procuramos jogos “relaxantes” para escapar da ansiedade de um mundo que exige produtividade constante. E o que Easy Delivery Co. faz? Ele pega essa mesma ansiedade, a veste com um gorro de gato fofo, e a vende de volta para nós ao som de batidas lo-fi.
Não é uma fuga. É um espelho. E a imagem que ele reflete é a de nós mesmos: dirigindo sozinhos em círculos na neve, com frio, com fome, esperando ansiosamente pelo próximo pedido, enquanto dizemos a nós mesmos que estamos, de alguma forma, “relaxando”.
É a mentira mais bonita, e a verdade mais assustadora, que um videogame me contou este ano.
NOTA
CONSIDERAÇÕES
Easy Delivery Co. é uma obra-prima desconfortável. Seu maior triunfo é também seu aspecto mais assustador: ele transforma a precariedade do trabalho em um loop de gameplay tão viciante que você vai implorar por mais. É um espelho que reflete nossa própria Síndrome de Estocolmo corporativa. Uma experiência essencial, apesar de engasgar tecnicamente aqui e ali.
