Em um cenário em que o hiper-realismo domina os jogos de corrida, cada detalhe parece ser calculado com obsessão científica. Força-G, reflexos de luz, transferência de peso: tudo replicado com precisão quase laboratorial. Entre simuladores que buscam fidelidade milimétrica e arcades que apostam na diversão despreocupada, a fronteira parece cada vez mais rígida. É justamente nesse espaço de tensão que Formula Legends encontra lugar. Não como imitação da realidade, mas como celebração de sua essência.
Desde os primeiros segundos percebi que este não era apenas mais um título perdido no oceano do gênero. Ele soa como uma carta de amor irreverente e apaixonada a seis décadas de automobilismo. Sua simplicidade aparente, marcada por um visual quase chibi e por uma proposta “sim-cade”, não denuncia falta de recursos. É uma escolha deliberada, estética e filosófica. Ao deixar de lado a tirania da perfeição técnica, Formula Legends concentra-se no que sempre esteve no coração das corridas: a paixão, a memória e, acima de tudo, a alegria de pilotar. Ele não chega a ser um simulador, mas encontra algo que muitos simuladores perderam pelo caminho. Encontra alma. E suas imperfeições, longe de comprometer a experiência, são parte essencial do seu charme.
Minha jornada em carreira
O “Modo História” de Formula Legends não tenta seguir a cartilha de uma narrativa tradicional. Não há rivalidades cinematográficas, arcos de redenção ou cutscenes grandiosas. O que o jogo oferece é algo diferente: a própria história do automobilismo, contada como uma viagem em que eu assumo o papel de protagonista. A cada temporada, sou levado dos rugidos brutos dos anos 60 até a tecnologia refinada dos dias de hoje, passando por cada década como quem folheia um álbum de memórias.
Entre as escolhas mais instigantes da 3DClouds está a decisão de não usar licenças oficiais da Fórmula 1. No lugar dos campeões conhecidos, encontro pilotos fictícios, inspirados em lendas reais, com nomes que soam como ecos familiares, como “Mark Peerstallen” ou “Byron Rena”. O que poderia ser limitação acaba funcionando como engenho. Esses nomes criam um palimpsesto: um novo texto escrito sobre a memória do antigo, que ainda se deixa entrever. Não preciso que o jogo me diga Senna ou Schumacher. O espaço vazio é um convite para que eu projete minhas próprias lembranças, e é aí que a experiência ganha intimidade. O verdadeiro protagonista não é o piloto digital na tela, mas eu, que preencho essa história com minha nostalgia.
Alguns podem ver a repetição do modo carreira como um defeito. Correr, vencer e seguir para a próxima temporada pode soar mecânico para quem busca uma narrativa cinematográfica. Para mim, é justamente nessa repetição que reside o sentido. A Fórmula 1 sempre foi feita de ciclos: vitórias, derrotas, recomeços. Formula Legends não documenta o passado como se fosse museu; ele me permite senti-lo em primeira pessoa. E ao fazê-lo, transforma-se em um tributo à memória, mais do que à fidelidade histórica.
Uma simples complexidade
O coração de Formula Legends pulsa em sua filosofia “sim-cade”. À primeira vista, tudo remete a um arcade: controles acessíveis, curva de aprendizado suave, diversão imediata. Mas sob essa superfície, há uma camada estratégica que se revela pouco a pouco, dando corpo a uma experiência mais densa do que eu esperava. A pilotagem é instintiva, a sensação de velocidade é convincente, e as corridas fluem com naturalidade. Se há uma aresta, é na disputa roda a roda: as ultrapassagens carecem de mais tensão, parecendo fáceis demais quando se está no meio do pelotão.
O que realmente distingue o jogo é sua habilidade em mudar de pele conforme a era. Pilotar um carro dos anos 60 em uma versão retrô de Mônaco, com seu traçado original, é visceralmente diferente de guiar uma máquina aerodinâmica atual. Nos carros clássicos, sem DRS (ou WRS, como é chamado aqui) e sem estratégias complexas de pneus, resta apenas a pilotagem pura. Já nas eras modernas, a corrida se transforma em um xadrez de estratégias. Essa alternância não é só um detalhe estético: é o que mantém a experiência sempre fresca, um lembrete de como o esporte mudou, e de como continua mudando.
Outro mérito está no equilíbrio de dificuldade. Os três modos: Fácil, Normal e Difícil que são calibrados com precisão. Comecei no Fácil, avancei para o Normal e senti o desafio crescer de forma orgânica, sem frustrações ou saltos bruscos. Falta, sim, um multiplayer que prolongue a vida útil do jogo. É uma ausência notável, mas que soa como decisão consciente. Formula Legends não tenta ser a plataforma definitiva de corrida online; prefere ser uma carta de amor ao passado, uma experiência íntima para quem quer revisitar o esporte em silêncio, sem distrações. Nesse sacrifício, há também uma declaração de identidade: o jogo sabe exatamente o que é, e o que não quer ser.
O coração estratégico da corrida
A filosofia sim-cade de Formula Legends aparece de forma mais clara nas mecânicas de corrida. Para além da aceleração pura, o jogo oferece sistemas que me obrigam a pensar em termos estratégicos, quase como um engenheiro de pista. O feedback em tempo real, com setores destacados em roxo, verde e amarelo, transforma cada volta em uma avaliação constante, clara e instigante.
A gestão de recursos é central. O WRS (Wing Reduction System), equivalente ao DRS da Fórmula 1, se ativa quando estou a menos de um segundo do adversário em pista seca, criando um instante de adrenalina no momento da ultrapassagem. Junto dele, há a bateria, que recarrega ao longo da corrida e permite um impulso extra de velocidade sob demanda. Quando somados ao desgaste de pneus e ao consumo de combustível, esses sistemas criam uma camada de complexidade que vai muito além do “pisar fundo”. Escolher o composto certo, decidir o momento do pit stop, evitar o bloqueio das rodas na freada ou a perda de aderência fora da linha seca em corridas molhadas: tudo isso contribui para uma imersão surpreendentemente refinada.
A verdadeira joia das mecânicas está no pit stop. Em vez de uma simples animação passiva, o jogo propõe um mini-game interativo, uma sequência cronometrada de botões que transforma o box em um momento de tensão. A eficiência da parada depende inteiramente do meu desempenho nessa breve coreografia. O que poderia ser burocrático se torna um ápice de urgência e precisão, reforçando a filosofia do jogo de gamificar a simulação sem diluí-la. Nesse gesto, a 3DClouds mostra que diversão e realismo não precisam ser antagônicos, mas podem se potencializar mutuamente.
O encanto da nostalgia
Minha primeira impressão de Formula Legends foi marcada pelo estilo visual cartunizado e estilizado, que imediatamente o diferencia de seus concorrentes. A arte é simples e charmosa, quase fofa, e me libera do peso do fotorrealismo. Não preciso me preocupar se um carro não se parece exatamente com o real ou se uma curva não é modelada com perfeição. Essa estética é a linguagem visual do jogo, um convite para focar na pura alegria do movimento e da competição, em vez da fidelidade técnica.
No PlayStation 5, a experiência visual é vibrante. Notei alguns soluços gráficos e texturas que demoram a carregar, mas a paleta de cores é equilibrada e bem saturada. A iluminação complementa o estilo estilizado, e os modelos de carros e personagens mantêm um nível de detalhamento impressionante, conferindo ao conjunto um charme próprio.
Se o visual expressa o charme, o áudio é a alma do jogo. O design de som é brilhante. Os motores são distintos para cada era, funcionando quase como uma trilha sonora da nostalgia. O rugido bruto dos anos 70, o som agudo e estridente dos motores turbo dos anos 80 e a sofisticação das unidades de potência modernas ressoam com autenticidade. O contraste entre a simplicidade visual e a riqueza auditiva cria uma experiência leve, mas emocionalmente profunda.
Ainda assim, senti falta de alguns recursos. A ausência de replays é frustrante para um esporte tão focado em momentos icônicos. A tela de cronometragem, que não mostra o pelotão completo nem os pit stops, dificultou acompanhar o que acontecia em determinados momentos da corrida. São detalhes que não comprometem a experiência, mas poderiam torná-la ainda mais completa.
A delícia das imperfeições
Formula Legends é um jogo de paradoxos, e é justamente aí que mora sua força. Ele é um arcade com coração de simulação, uma carta de amor que conhece suas próprias falhas. Não se trata de uma experiência perfeita, longe disso. A ausência de multiplayer, que em outros títulos poderia ser vista como uma falha, aqui reforça o foco na jornada histórica individual. O jogo foi feito para ser desfrutado sozinho, competindo contra o próprio tempo e a própria memória do esporte. A única competição real que encontrei foi nas tabelas de classificação online, uma forma simbólica de lutar pelo meu lugar na história das pistas.
Apesar de suas limitações técnicas e da falta de modos de jogo, Formula Legends é um tributo honesto, charmoso e apaixonado à história do automobilismo. Não é o simulador que a Fórmula 1 talvez mereça, mas é o tributo que a memória sentimental do esporte precisava. O jogo me lembrou que, nos games como na vida, charme, alma e sentimento podem ser mais valiosos do que a perfeição. Ele convida a celebrar o automobilismo não por meio de uma replicação fria da realidade, mas através de um prisma de nostalgia, em que cada curva, ultrapassagem e rugido de motor evocam lembranças. No fim, foi um prazer absoluto jogar Formula Legends, e ele se tornou um dos títulos que pretendo manter na minha rotação regular. O jogo é, acima de tudo, um lembrete delicioso de que a busca pela perfeição pode ser superada pelo encanto de suas imperfeições.
NOTA
CONSIDERAÇÕES
Formula Legends é um tributo nostálgico ao automobilismo, equilibrando diversão arcade e profundidade estratégica. Suas imperfeições tornam a experiência única, oferecendo charme, emoção e uma celebração pessoal do esporte.