Há jogos que te recebem com um tapete vermelho, um tutorial amigável e uma promessa de poder. E há PIGFACE. Ele não te recebe. Ele te joga de cabeça numa poça do seu próprio sangue, com uma dor de cabeça latejante que tem menos a ver com a ressaca e mais com o dispositivo explosivo que alguém acabou de implantar na sua base craniana. Este não é um convite para uma fantasia de poder; é uma enxaqueca interativa, um mergulho sem cerimônias no esgoto da alma humana.
Desenvolvido em grande parte por uma única pessoa, sob o pseudônimo de titolovesyou, e publicado pela DreadXP, PIGFACE é um shooter em primeira pessoa que se recusa a fazer amigos. Você é Exit, descrita sem rodeios como “uma mulher terrível cujo passado horrível finalmente a alcançou”. O jogo começa, e um telefone toca. Do outro lado da linha, uma voz calma e anônima informa que sua cabeça agora é uma bomba-relógio, e a única maneira de adiar a detonação é aceitar “contratos”. Em outras palavras: matar quem eles mandarem.

É uma premissa brutal, direta e maravilhosamente noir. E, de certa forma, é a metáfora perfeita para a experiência de jogar um título em Acesso Antecipado. Assim como Exit, nós, os jogadores, somos jogados num mundo hostil e incompleto, forçados a aprender suas regras brutais na marra. A bomba na cabeça dela é a promessa instável do desenvolvedor: um lembrete constante de que tudo pode explodir a qualquer momento, seja por um bug que corrompe seu save ou pelo simples abandono do projeto. A questão que paira no ar, tão pesada quanto a fumaça de um cigarro barato, é: a promessa crua e ensanguentada do que este jogo pode vir a ser vale a dor de cabeça de hoje?
O Passado é uma Cadela
Esqueça as longas cenas de exposição ou os diários em áudio que detalham cada reviravolta da trama. A narrativa de PIGFACE é contada nos espaços vazios, nas entrelinhas de um briefing de missão num laptop antigo ou no tom gélido da voz que te dá ordens pelo telefone. O mundo é o texto. Os apartamentos imundos, os motéis de beira de estrada com manchas suspeitas nas paredes e os armazéns abandonados onde o cheiro de mofo quase atravessa a tela. Eles não apenas compõem o cenário; eles são a história. Uma história sem heróis, onde cada personagem parece estar competindo pelo título de pior pessoa do recinto.
No centro disso tudo está Exit. O jogo faz questão de nos dizer que ela é uma “mulher terrível”, mas nunca especifica o porquê. E essa omissão é, talvez, o maior trunfo narrativo do jogo. Sem um passado definido, somos nós que o escrevemos com nossas ações. Cada execução a sangue frio, cada cabeça esmagada com um martelo, cada corpo deixado para trás não é apenas a conclusão de um objetivo de missão; é um flashback que nunca aconteceu. O jogo nos força a uma cumplicidade perturbadora: quanto mais brutalmente jogamos para sobreviver ao presente, mais justificamos o passado monstruoso que nos foi atribuído. Não jogamos como uma anti-heroína em busca de redenção. Jogamos como uma vilã tentando, egoisticamente, viver mais um dia.

A voz no telefone é nossa única âncora nesse mistério, nosso captor e nosso único empregador. A dinâmica é de puro terror psicológico, uma alavancagem absoluta que nos coloca numa posição de impotência total, mesmo enquanto chacinamos dezenas de inimigos. No estado atual do Acesso Antecipado, essa trama é pouco mais que uma premissa. As missões parecem desconexas, e o mistério central de quem está por trás de tudo permanece intocado. É um esqueleto narrativo, mas um com uma postura excelente, prometendo um thriller neo-noir denso e envolvente se a carne um dia for adicionada a esses ossos.
A Dança da Morte Desajeitada
O ciclo de PIGFACE é simples e viciante. Você acorda no seu apartamento miserável, acessa o laptop para escolher um contrato, gasta o dinheiro sujo do último serviço no Mercado Negro para comprar equipamentos e, então, mergulha em mais um matadouro. Os níveis são apresentados como arenas de combate no estilo sandbox, prometendo liberdade total de abordagem: entre atirando ou seja lento e tático. É uma promessa sedutora, a de um immersive sim com a estética de um filme snuff. Mas, na prática, a realidade é um pouco mais caótica.
Passei minhas primeiras horas tentando ser um fantasma. Equipei um silenciador, me movi agachado pelas sombras e tentei abater inimigos um a um. Foi um desastre. A inteligência artificial de PIGFACE é, para dizer o mínimo, bipolar. Em um momento, um inimigo do outro lado do mapa parece ter visão de raio-x e te detecta através de três paredes. No momento seguinte, você pode disparar uma escopeta a dois metros de um guarda e ele mal piscará, como se o som fosse apenas o vento. Essa inconsistência transforma a furtividade numa aposta frustrante, não numa estratégia viável.
E é aí que a verdadeira identidade do gameplay se revela. Invariavelmente, o plano falha. Você é detectado. E o que se segue não é um “game over”, mas sim a verdadeira essência do jogo: a improvisação violenta. O silêncio tenso da furtividade explode numa cacofonia de tiros, gritos e desespero. Você larga a pistola silenciosa, pega a submetralhadora do corpo mais próximo e começa a dançar. É uma dança da morte desajeitada, feia e absolutamente eletrizante. PIGFACE não é sobre escolher entre o caos e o controle; é sobre o quão bem você consegue gerenciar a transição inevitável do segundo para o primeiro. Com apenas um punhado de mapas disponíveis no momento, que podem ser concluídos em cerca de três ou quatro horas, a experiência é curta. A rejogabilidade existe na forma de testar novos arsenais, mas a verdade é que, não importa como você comece, cada missão termina do mesmo jeito: no meio de uma tempestade de balas.
Ferramentas do Ofício Sujo
Se o gameplay é uma dança caótica, as mecânicas são os passos que a compõem. E o coração pulsante de PIGFACE é o seu combate. É pesado, punitivo e visceral. Não há mira na tela na maior parte do tempo, forçando o jogador a usar a mira de ferro da arma, o que adiciona uma camada de realismo e tensão a cada disparo. Tanto você quanto seus inimigos são feitos de carne e osso, não de esponjas de balas. Um ou dois tiros bem colocados são suficientes para derrubar qualquer um, e um tiro na cabeça é morte instantânea. O pânico é um recurso constante.

Para se preparar para o massacre, há o Mercado Negro. Com o dinheiro ganho nos contratos, você compra de tudo: pistolas, fuzis, escopetas, coletes de kevlar, minas terrestres e granadas. Algumas armas podem ser modificadas com miras e silenciadores, embora o balanceamento ainda precise de ajustes. Descobri que um revólver.357 com uma mira telescópica transformava os níveis em um safári, permitindo que eu eliminasse todos os inimigos à distância sem que eles tivessem a menor chance de reagir, quebrando completamente o desafio.
No entanto, a verdadeira genialidade mecânica do jogo reside em sua limitação de inventário. Você só pode carregar uma arma de fogo, uma arma branca e um item de cura por vez. Essa decisão de design é brilhante e brutal. Ela te força a fazer escolhas agonizantes antes de cada missão. Levo o martelo para encontros próximos ou a faca, que posso arremessar? A submetralhadora para controle de multidões ou o rifle para precisão? Essa escassez forçada, essa “pobreza tática”, eleva cada decisão e reforça o tom de sobrevivência desesperada. Pegar a arma de um inimigo caído não é uma conveniência; é um momento crucial de alívio. Infelizmente, o sistema de máscaras, que deveria conceder habilidades únicas e definir estilos de jogo, ainda parece um conceito em desenvolvimento. É uma ideia fantástica que, por enquanto, não passa de uma promessa.
A Beleza da Podridão
Em um mar de jogos independentes que usam gráficos retrô como uma muleta, PIGFACE os utiliza como um bisturi. A estética low-poly, que remete à era do primeiro PlayStation, não é uma limitação, mas uma escolha artística deliberada e poderosa. Ela banha o mundo numa qualidade de pesadelo, onde as texturas borradas e os modelos de personagens angulares evocam uma memória corrompida de jogos passados, como Max Payne ou Manhunt.
Essa estética é amplificada pelo filtro de VHS, opcional mas, na minha opinião, essencial. Não é um mero efeito de tela; é uma lente que distorce a realidade. Ele adiciona uma camada de sujeira analógica, de decadência magnética, como se estivéssemos assistindo a uma fita encontrada, uma gravação de algo que não deveríamos ver. É o complemento visual perfeito para os temas noir do jogo.
A paisagem sonora é a outra metade desta equação atmosférica. O áudio é surpreendentemente realista e de alta fidelidade, criando um contraste fascinante com os visuais abstratos. O som abafado dos seus passos num corredor empoeirado, o estalo ensurdecedor de um tiro não silenciado ecoando num pátio, os gritos distorcidos dos inimigos. Tudo contribui para uma imersão palpável. A trilha sonora, uma mistura de faixas sombrias, industriais e por vezes frenéticas, é o pulso arrítmico de Exit, a cacofonia em sua mente. O que o jogo nos mostra é um mundo que parece um videogame antigo, mas o que ele nos faz ouvir é terrivelmente real. Essa dissonância sensorial força nossa imaginação a preencher os detalhes visuais grotescos, tornando a violência mais perturbadora do que gráficos fotorrealistas jamais conseguiriam.
Engasgos na Máquina
É preciso ser claro: joguei PIGFACE numa máquina mais do que capaz de rodá-lo sem suar. Com um processador Ryzen 7 5700x, uma placa de vídeo RTX 4060 e 32 GB de memória RAM, eu esperava uma performance impecável, especialmente considerando o estilo gráfico do jogo. A realidade, no entanto, foi outra.
Desde os primeiros momentos, notei engasgos e quedas de quadros que, embora não quebrassem o jogo, eram constantes e irritantes o suficiente para me tirar da experiência. O stuttering é o inimigo mortal da imersão. Em um jogo que trabalha tão duro para construir uma atmosfera densa e opressiva, cada travadinha é como uma luz de emergência se acendendo no meio de uma sessão de cinema, um lembrete indesejado de que você está, afinal, apenas jogando um software instável.

Claro, estamos falando de um título em Acesso Antecipado, feito majoritariamente por uma pessoa. Problemas de otimização são esperados, quase uma tradição. Mas isso não diminui o impacto negativo. A performance irregular não é apenas uma falha técnica; é um ataque direto ao maior trunfo artístico de PIGFACE. Corrigir esses engasgos não é apenas uma questão de polimento; é uma questão de preservar a alma do jogo.
Uma Promessa Banhada em Sangue
Ao final da minha jornada sangrenta, a sensação que fica é a de ter testemunhado o nascimento de algo especial, ainda que malformado. PIGFACE é um estudo de contradições. É brilhante em sua atmosfera e quebrado em sua execução. É um primor de estilo visual e sonoro que tropeça em problemas técnicos básicos. Seu combate é cru, satisfatório e tenso, mas suas mecânicas de suporte, como a furtividade e o sistema de máscaras, ainda estão em estado embrionário.
Posso recomendar PIGFACE incondicionalmente no seu estado atual? Não. Seria irresponsável. Comprar o jogo hoje não é adquirir um produto finalizado, mas sim um bilhete de loteria, um investimento na promessa de um desenvolvedor talentoso. É um ato de fé. Para o jogador que busca uma experiência polida, coesa e completa, o conselho é simples: espere. Coloque-o na sua lista de desejos e observe de longe.
Mas… para aquele tipo específico de jogador, o arqueólogo de gemas brutas, aquele que se delicia em descobrir um clássico cult em formação e que está disposto a suportar os cacos de vidro para sentir o gostinho de uma visão artística pura e sem concessões, a história é outra. Para esse jogador, a dor de cabeça explosiva de PIGFACE pode ser exatamente o tipo de dor que vale a pena sentir. Porque sob as camadas de bugs e conteúdo em falta, pulsa um coração negro, violento e maravilhosamente promissor.
NOTA
CONSIDERAÇÕES
PIGFACE é uma promessa brutal e estilosa, um shooter noir com uma atmosfera fantástica e combate visceral. No entanto, seu estado atual em Acesso Antecipado é uma faca de dois gumes: a genialidade de sua visão artística é constantemente minada por problemas de desempenho, IA inconsistente e mecânicas inacabadas. É uma compra recomendada apenas para os entusiastas que querem apostar em seu enorme potencial; para todos os outros, é um jogo para se observar de perto, com a esperança de que a promessa de hoje se torne a obra-prima sangrenta de amanhã.
