Confesso que andava cansado. Cansado de ser um gerente de logística disfarçado de prefeito. Cansado de encarar planilhas de produção, gráficos de eficiência e mapas de calor de tráfego que transformavam a arte de construir cidades em um exercício de otimização fria e desalmada. Meus últimos empreendimentos no gênero me deixaram com a sensação de que eu não estava criando um lar para pessoas, mas sim um formigueiro perfeitamente funcional para unidades de produção. A beleza era um luxo, a idiossincrasia um erro de cálculo. E então, como uma brisa morna do Mediterrâneo, chegou Town to City.
Este não é um jogo que lhe entrega uma calculadora e um manual de engenharia urbana. Ele lhe entrega um pincel. A premissa, distribuída pela Kwalee em sua versão para PC, é de uma simplicidade que desarma: comece com um pequeno povoado e o transforme em uma cidade próspera. Mas a pergunta que ele faz é fundamentalmente diferente da de seus pares. Ele não questiona “Como posso fazer isso funcionar da forma mais eficiente?”, mas sim “Como posso fazer com que este lugar seja bom de se viver?”. É um convite para abandonar a tirania da grade, a obsessão pela simetria, e mergulhar em uma experiência projetada para ser intencionalmente “aconchegante” e livre de atritos.
Mas aqui reside o paradoxo que me intrigou desde o primeiro momento: um jogo de construção de cidades que remove deliberadamente o estresse, o perigo e a complexa gestão de crises pode, de fato, ser cativante? Ou ele se torna apenas um brinquedo estético, uma casa de bonecas digital bonita, mas vazia de propósito? Eu precisava descobrir se, ao remover a pressão, o que sobraria seria a pura alegria da criação ou apenas um vácuo entediante.
Crônicas de um Prefeito Relutante
Se você procura uma narrativa épica com reviravoltas e personagens complexos, pode tirar o cavalinho da chuva. A “campanha” de Town to City é, na melhor das hipóteses, um tutorial glorificado. Ela nos guia pelas mãos, começando no mapa ameno de Belvau, onde aprendemos o básico de abrigar cidadãos e fornecer comida, antes de nos levar para Fontebrac, que introduz a complexidade da agricultura. É um processo de aprendizagem estruturado, mas não é uma história. E isso é ótimo, porque a verdadeira narrativa do jogo não é escrita pelos desenvolvedores, mas por nós.
A história de Town to City é emergente, tecida nos pequenos dramas e decisões do dia a dia. Ela começa na estação de trem, com a chegada de uma nova família. Eles não são apenas um número a mais na contagem populacional; eles são indivíduos com um ícone sobre a cabeça, esperando que você lhes designe um lar. Às vezes, eles vêm com pedidos específicos: uma casa perto do mercado, um quintal com muitas árvores, um lugar tranquilo. Atender a esses desejos se torna uma micro-missão, um contrato pessoal entre você e aqueles pequenos seres de voxel. De repente, você não está apenas alocando recursos, está tentando fazer uma família feliz.
O verdadeiro protagonista aqui é a própria cidade. Seu arco de personagem é a jornada de “Povoado” para “Aldeia”, de “Vila” para “Pequena Cidade”. Cada atualização, desbloqueada ao atingir metas de população e felicidade, é um marco, um novo capítulo na vida da sua criação. A história é contada nas ruas sinuosas que você desenhou, nos parques que você plantou e nas praças que floresceram onde antes só havia terra. É uma crônica silenciosa, escrita com paralelepípedos e floreiras, sobre a transformação de um pedaço de terra em um lugar que se pode chamar de lar.
A Dança Entre o Divino e o Mundano
A experiência central de Town to City é um balé constante entre duas perspectivas radicalmente diferentes. Em um momento, você está com a câmera totalmente afastada, um deus benevolente planejando o traçado de um novo bairro, decidindo onde ficarão os mercados e as residências para otimizar o fluxo de mercadorias. No instante seguinte, você dá um zoom vertiginoso e se torna um humilde jardineiro, um decorador de interiores, agonizando sobre a posição exata de um vaso de flores na varanda de uma única casa para que seus moradores fiquem um pouco mais felizes. Essa dualidade, essa capacidade de transitar do macro para o micro em segundos, é o coração pulsante do jogo.
O motor que impulsiona tudo é um ciclo de feedback elegantemente simples: a felicidade. Seus cidadãos têm necessidades básicas de comida, roupas e, crucialmente, decoração. Atenda a essas necessidades, e a felicidade média da sua cidade aumenta. Uma cidade feliz atrai mais imigrantes pela estação de trem. Mais cidadãos significam mais mão de obra e a possibilidade de expandir, desbloqueando novas construções e itens decorativos através de uma árvore de pesquisa. É um sistema intencionalmente simplificado, que foca mais no gerenciamento do espaço do que em cadeias de produção complexas.
Essa filosofia se estende à diferença entre os modos de jogo. O modo Campanha é a jornada guiada, onde você desbloqueia funcionalidades progressivamente, enfrentando os desafios de cada um dos cinco mapas disponíveis. Já o modo Sandbox é a liberdade absoluta. Ele entrega as chaves do reino, com tudo desbloqueado e regras personalizáveis, permitindo a criação pura e sem restrições. É aqui que o jogo realmente se revela como uma tela em branco para a sua imaginação.
O mais chocante, no entanto, é o que está ausente. Não há desastres, incêndios, crimes ou motins. Seus cidadãos podem ficar infelizes, mas eles não pegarão em tochas e forcados. A economia é incrivelmente permissiva; mover uma construção não custa nada, e refazer uma estrada também não. Essa ausência de perigo não é uma falha de design, é uma escolha deliberada. O jogo remove a ansiedade da equação para que você possa se concentrar exclusivamente no prazer de construir. O desafio não vem de lutar contra o sistema, but de satisfazer sua própria visão criativa. O único tirano em Town to City é o seu próprio perfeccionismo.
A Liberdade Tem Um Preço (E Ele é Ligeiramente Torto)
O pilar mecânico sobre o qual todo o jogo se sustenta é seu sistema de construção “verdadeiramente sem grade”. Esta é, ao mesmo tempo, a maior bênção e a maior maldição do jogo. Por um lado, é libertador. Finalmente, podemos criar cidades que parecem orgânicas, com ruas sinuosas que sobem colinas e bairros que se encaixam na topografia como se tivessem crescido ali ao longo de séculos. Por outro, para alguém como eu, com uma tendência obsessiva por linhas retas e ângulos de 90 graus, os primeiros momentos foram um pesadelo.
Passei mais tempo do que gostaria de admitir tentando desenhar duas estradas perfeitamente paralelas, apenas para descobrir que estavam desalinhadas por um único pixel, transformando meu bairro planejado em uma fileira de dentes tortos. A frustração inicial foi real. Mas, eventualmente, algo clica. Você para de lutar contra a ferramenta e começa a trabalhar com ela. Você abraça a “bela e caótica bagunça” para a qual o jogo foi projetado. E é aí que a mágica acontece. As cercas levemente tortas e as ruas que não se alinham perfeitamente deixam de ser falhas e se tornam caráter. Elas dão à sua cidade uma alma, um toque humano que a simetria perfeita jamais poderia alcançar.
Essa elegância de design se manifesta de forma brilhante no sistema de decoração contextual, que eu apelidei de “a caixa de flores mágica”. Você seleciona um simples canteiro de flores. Passe o mouse sobre a janela de uma casa, e ele se transforma em uma floreira. Aproxime-o de uma parede, e ele vira uma guirlanda suspensa. Coloque-o na água, e surgem vitórias-régias. Essa mecânica, aplicada a vários itens, é genial. Ela incentiva a experimentação e recompensa a curiosidade, transformando cada objeto decorativo em um leque de possibilidades.
Tudo isso é sustentado por uma economia gentil. Você designa trabalhadores, gasta pontos de pesquisa para desbloquear novas estruturas e gerencia o fluxo de bens de armazéns para lojas. Mas esses sistemas são guias, não carcereiros. Eles existem para dar estrutura à sua criatividade, não para limitá-la. A liberdade de experimentar sem punição é o que torna cada decisão, cada construção, um ato de pura expressão pessoal.
Um Diorama Banhado Pelo Sol
É fácil olhar para as imagens e pensar “ah, é um jogo de bloquinhos”. Mas reduzir a direção de arte de Town to City a isso seria um erro crasso. O estilo voxel não é uma limitação, é uma escolha estética deliberada que confere ao mundo uma qualidade tátil, quase artesanal. Parece menos um videogame e mais um diorama primorosamente construído, uma maquete viva que você pode manipular. Os visuais são consistentemente descritos como deslumbrantes, com uma iluminação belíssima que banha o cenário em uma luz quente e convidativa, criando uma atmosfera que é simplesmente encantadora.
Essa atmosfera é reforçada pelo cenário mediterrâneo. Os telhados de terracota, a vegetação exuberante e os lagos cristalinos criam um senso de lugar que é ao mesmo tempo específico e universalmente idílico. É um refúgio visual, um lugar onde você genuinamente gostaria de passar uma tarde.
A trilha sonora é a cola que une toda essa experiência. Composta por melodias relaxantes, muitas vezes pontuadas pelo som nostálgico de um acordeão, a música nunca se impõe, mas está sempre presente, tecendo uma tapeçaria sonora que complementa perfeitamente a sensação de calma e criatividade. O áudio e o visual trabalham em uma harmonia tão perfeita que se tornam parte da própria mecânica de jogo. Eles não são apenas um invólucro; são ferramentas ativas que induzem um estado de fluxo, permitindo que você se perca por horas a fio no simples ato de embelezar seu mundo. E são os pequenos detalhes que o tornam vivo: ver um cidadão sentar-se em um banco que você acabou de colocar, ou observar as bandeiras tremulando suavemente ao vento, transforma sua cidade de um modelo estático em um ecossistema pulsante.
A Máquina dos Sonhos Funciona Sem Soluços
Vamos direto ao ponto. Minha máquina para esta análise foi equipada com uma RTX 4060, um processador Ryzen 7 5700X e 32 GB de RAM. Olhando para os requisitos recomendados do jogo, que pedem uma RTX 2060 e um Ryzen 7 5700, fica claro que minha configuração está bem acima do necessário. E a experiência reflete isso de forma espetacular.
Town to City roda de maneira impecável. A performance é sólida como uma rocha, com taxas de quadros altas e estáveis que não vacilam, mesmo quando a sua pequena vila se transforma em uma metrópole vibrante e cheia de cidadãos. Eu forcei os limites: dei zoom em praças lotadas, girei a câmera sobre bairros densamente decorados e me afastei para ver a cidade inteira em sua glória. O jogo não pestanejou. A única, e quase imperceptível, queda de fluidez que notei foi durante um zoom-out extremamente rápido sobre uma cidade já massiva, um soluço momentâneo que mal vale a pena mencionar e que não afeta em nada a jogabilidade.
O que torna isso tão notável é o fato de que estamos falando de um jogo em Acesso Antecipado. Em uma era onde lançamentos “incompletos” são sinônimo de bugs, crashes e otimização precária, Town to City é, sem exagero, um milagre. A estabilidade técnica é tão impressionante que o jogo parece mais polido do que muitos títulos lançados em sua versão final. Essa confiabilidade não é um bônus; é um componente essencial da filosofia de design do jogo. Uma experiência “aconchegante” e “livre de atritos” seria impossível se você estivesse constantemente lutando contra problemas técnicos. A tecnologia aqui é invisível, funcionando silenciosamente nos bastidores para garantir que nada, absolutamente nada, quebre o seu estado de imersão criativa.
A Cidade Que Mora em Mim
Ao final de dezenas de horas, percebi que Town to City não é apenas um jogo. É uma ferramenta. Uma ferramenta para a atenção plena, um exercício de autoexpressão disfarçado de simulador. Ele não testa seus reflexos ou sua capacidade de gerenciar crises. Ele testa sua paciência, sua visão e sua capacidade de encontrar beleza na imperfeição. O orgulho que senti ao olhar para minha cidade, com suas ruas tortas e seus parques assimétricos, foi mais profundo do que qualquer vitória em um jogo de estratégia convencional. Porque cada elemento ali, do maior bulevar à menor floreira, era um reflexo direto de uma escolha minha, uma pincelada pessoal na tela.
O jogo consegue algo raro: ele redefine o sucesso. O sucesso não é atingir um balanço econômico positivo ou uma cadeia de suprimentos otimizada. O sucesso é criar um lugar onde você mesmo gostaria de viver. É dar um passo para trás, olhar para a sua criação banhada pela luz do pôr do sol e sentir uma genuína sensação de paz e satisfação.
A verdadeira genialidade de Town to City não está em nos permitir construir um mundo perfeito. Está em nos dar a liberdade, e o gentil encorajamento, para construir um mundo perfeitamente humano. Um mundo com todas as suas falhas charmosas, suas idiossincrasias e sua beleza torta e inegável. No final, a cidade que você constrói na tela é apenas um espelho daquela que, de alguma forma, sempre existiu dentro de você.
NOTA
CONSIDERAÇÕES
Town to City abandona a complexidade estressante e a tirania das planilhas, comuns em outros jogos do gênero, para entregar uma experiência focada na pura alegria da criação. É menos um simulador de gerenciamento e mais uma tela em branco para construir cidades orgânicas, charmosas e profundamente pessoais. Sua liberdade criativa, aliada a uma apresentação visual e sonora impecável e uma performance técnica surpreendente para um Acesso Antecipado, o torna uma recomendação essencial para quem busca relaxar e construir algo verdadeiramente seu, sem punições ou pressão.